sobre
Nos dias de hoje é comum depararmo-nos com biografias de artistas portugueses em que é dado enfâse ao curriculum académico. Começam regularmente com alguns dados biográficos civis, como a data e o local de nascimento, passando de imediato para os dados do percurso académico. Esta informação destacada parece-nos uma forma banal de acreditação da sua poética e da sua prática artística. A biografia do artista é algo que se vai construindo com o passar do tempo e pode manifestar paralelamente à sua obra, um direito e uma liberdade poética.É a obra que transfigura, transforma e metamorfoseia tantos os êxitos como os fracassos humanos do artista. Assim, a biografia emancipada da obra, torna-se uma fronteira permeável em que se cruzam a atividade artística e o relato duma vida. No final aquilo que sabemos, pode ser tudo afinal inventado, fruto de uma outra construção.
No caso de Isaque Pinheiro, nascido em 1972 em Lisboa, podemos reforçar a ideia de biografia, como algo arquitectado e que se vai construindo. Um encadeamento de contínuo de vivências e afectos, entre a realidade do seu dia a dia, das suas dúvidas e fascínios. Poderíamos ainda identificar «marcadores» da sua vivência, através de relatos de outros artistas e amigos que o conhecem e vão povoando a sua vida, nas cidades por onde foi habitando e trabalhando, ou na cidade do Porto onde atualmente habita.
Podemos procurar causas e efeitos, tão do agrado dos historiadores. Podemos tentar descobrir onde a obra e a vida, se cruzam na sua prática artística. Mas muito fica por descobrir, pois sabemos que o Isaque Pinheiro também é narrador da sua própria vida, surpreendido muitas vezes, como todas as pessoas, pelos jogos que se impõem em circunstâncias inesperadas. E subsistem coisas que desconhecemos, – ele próprio desconhece, – e se transformam em material conceptual que ocupa e atravessa a sua obra. Afinal um mistério afirma-se. O mistério onde reside o prazer de sermos confrontados como ele com o desassossego que nos convida a tentar procurar e descobrir mais, acerca do mundo, de nós e dos outros.
Da sua prática artística, da sua obra, podemos referir que é um artista que explora diversos meios, revelando uma inquietação contínua onde se cruzam questões clássicas e contemporâneas relacionadas com prática oficinal do artista, e uma intensa reflexão crítica sobre o que vai nos apresentando, assistida duma mestria técnica, pouco vulgar nos dias de hoje. Evidente por exemplo, nas exposições que tem apresentado de escultura, nomeadamente em pedra. É um dos elementos cofundadores dos Maus Hábitos – Espaço intervenção artística em 2001, e cofundador da Saco Azul – Associação Cultural na Cidade do Porto em 2006.
Tem participado em inúmeras exposições colectivas e individuais em diversos países. Destacam-se as realizadas em Portugal, ou no Brasil, onde apresenta regularmente e de forma intensa a sua obra. Destacamos as exposições individuais: na Galeria Presença no Porto, Caroline Pagès em Lisboa, Mário Sequeira em Braga, Esther Montoriol em Barcelona, no Paço Imperial e Galeria Laura Marsiaj no Rio de Janeiro, ou Ybakatu em Curitiba entre outras. Nas participações coletivas as exposições no Stenersen Museum em Oslo, Centro Galego de Arte contemporânea em Compostela ou Caixa Cultural do Rio de Janeiro.
A sua obra encontra-se representada nas coleções da Fundação PLMJ (Lisboa), Fundação EDP | MAAT (Lisboa), Coleção de Arte Contemporânea do Estado (CACE), Museu Amadeu de Sousa Cardoso (Amarante), Coleção MG (Alvito), Museu da Bienal de Cerveira, Centro Galego de Arte Contemporânea (Santiago de Compostela), Fundação Caixanova (Espanha), e Fundação Edson Queiroz (Fortaleza, Brasil), e ainda em diversas coleções privadas em vários países.
Em 2023 foi distinguido com o prémio da SPA - Sociedade Portuguesa de Autores para Melhor Exposição de Artes Plásticas de 2022.
João Baeta
2023
Reset, Galeria Presença, Lisboa, Portugal.
Sem Título nem Propriedade, Galeria Nuno Centeno (The Cave Project Space), Porto, Portugal.
2022
A Malha, Galeria de Arte .Insofar inserido no projeto Fachada, Lisboa, Portugal.
Da Caverna, Zaratan Arte Contemporânea, Lisboa, Portugal.
2019
Artist Book Gallery / Galeria Nuno Centeno, Porto, Portugal.
Vendo país no gerúndio, Project Room/Galeria Presença, Porto, Portugal.
Pano (residência artística na associação Pó de vir a ser), Departamento de Escultura em Pedra (festival Artes à Rua), Évora, Portugal.
Había una piedra en medio del camino, Galeria Artnueve, Múrcia, Espanha.
2018
AcorDo Rei, Paço Imperial, Rio de Janeiro, Brasil.
AcorDo Rei, dotART, Belo Horizonte, Brasil.
A Gregos e a Troianos, Galeria Caroline Pagès, Lisboa, Portugal.
Guarda-Luzes, Mupi Gallery, Maus Hábitos, Oporto.
Glória, Galeria Mário Sequeira, Braga, Portugal.
2017
“Arte de arremesso”/ Diálogo com as paredes, Travessa da Ermida, Lisboa.
2016
Desktop, Espaço Maus Hábitos, Porto.
Papel de parede, Dínamo 10, Viana do Castelo.
Palavras soltas que me dizes juntas, Janes, Braga.
2015
No caminho da arte preconceitual, Galeria Presença, Porto.
1/3, Kubikulo, Kubikgallery, Porto.
2014
Memória, Galeria Caroline Pagès, Lisboa.
2013
Deslocamentos, (com Cristina Ataíde), produção Galeria Ybakatu, Centro Cultural do Sistema Fiep, no âmbito da programação Ano de Portugal no Brasil, Curitiba.
Mão Livre, Galeria Ybakatu, Programação Ano de Portugal no Brasil, Curitiba.
O corte, Galeria Mário Sequeira, Braga.
2012
Quem corre por gosto não cansa, Galeria Laura Marsiaj, Rio de Janeiro.
Quem corre por gosto não cansa, Galeria Moura Marsiaj, São Paulo.
We Art Agência de Arte, Aveiro.
2011
Mão livre, Galeria Presença, Porto.
2010
A medida de todas as coisas, Galeria Caroline Pagès, Lisboa.
Curador, Galeria Esther Montoriol, Barcelona.
2009
Em debate, Espaço Maus Hábitos, Porto.
2008
Em cima da terra e debaixo do céu, Galeria Presença, Porto.
Em cima da terra e debaixo do céu, Galeria Goran Govorcin, Santiago de Compostela.
Camisa, Nogueira da Silva Museum, Braga, Portugal (cat.).
2007
Sapatos de pedra e um horizonte aberto, Galeria Presença, Lisboa.
Apego a um lugar, Galeria Laura Marsiaj, Rio de Janeiro.
2006
Sombras da ribalta, Galeria Presença, Porto.
Água de Colónia (com Rute Rosas), Galeria Virgilio, São Paulo (cat.).
2005
Universos Perpendiculares, Galeria Esther Montoriol, Barcelona.
2004
Opening, Internationale Kunsthalle Porto 1, Porto.
MAE, projecto das Mais Altas Esferas, Galeria Cubic, Lisboa (cat.).
MAE, projecto das Mais Altas Esferas, Galeria Ao Quadrado, Santa Maria da Feira (cat.).
MAE, Espaço Maus Hábitos, Porto.
2003
Hoje amo-te, Galeria Animal, Santiago, Chile (cat.).
Hoje amo-te, Espaço Consigo, Coimbra.
2002
Amor de…, Montemor-o-Novo Galeria Municipal, Montemor-o-Novo (cat.).
São extéreis, Senhor… são extéreis!, Galeria Extéril, Porto.
2001
Handle with Care, Espaço Maus Hábitos, Porto.
2022
Sovereign Portuguese Art Prize Finalists Exhibition, Palácio das Artes, Porto, com itinerância na Sociedade Nacional de Belas-Artes, Lisboa (Maio de 2022), Museu Berardo Estremoz (Junho de 2022), Portugal.
No vasto universo das imagens: Arte Contemporânea na Coleção da Câmara Municipal da Maia, Curadoria José Maia, Fórum da Maia, Portugal.
De Casa para um Mundo, Curadoria de Maria de Fátima Lambert, com itinerância na Sala de Esgrima do Colégio Almada Negreiros / FCSH-UNL, Lisboa, Portugal.
RED TAPE, Curadoria de Inês Valle, Galeria de Arte .Insofar, Lisboa, Portugal.
2021
Exposição 100 Anos, 100 artistas, Gare Marítima de Alcântara, Lisboa, Portugal.
CÜRÄRE – Manual de Instruções para Curas Banais, Curadoria de Margarida Pais, plataforma UmbigoLAB.
De Casa para um Mundo, Curadoria de Maria de Fátima Lambert, com itinerância na Galeria da Biblioteca Municipal Florbela Espanca em Matosinhos, no Centro Cultural Português de Camões, Instituto da Cooperação e da Língua, I.P. em Vigo e na Biblioteca Municipal Professor Machado Vilela em Vila Verde e na Sociedade Nacional de Belas-Artes em Lisboa, Portugal e Espanha.
2020
12º Prémio Amadeo de Souza-Cardoso (com atribuição do Prémio de aquisição do grupo dos amigos da biblioteca-museu), Amarante, Portugal.
Poético ou Político?, Curadoria de João Baeta – Mupi Gallery nos Mupis das Ruas da Cidade do Porto, Portugal.
De Casa para um Mundo, Curadoria de Maria de Fátima Lambert, XXI Bienal Internacional de Arte de Cerveira, com itinerância na Galeria de Arte CTJV em Monção, Portugal.
2019
“A oficina de pintura encarregar-se-á das partes pintadas do cenário”, Galeria Quadrum, Galerias Municipais de Lisboa, Portugal.
Fuso Anual de Vídeoarte Internacional de Lisboa (MAAT), Portugal.
Territórios Imaginados, Museo del Crudo, Sardenha, Itália.
2018
Island in the sun, Centro Cultural de S. Lourenço, Almancil, Portugal.
Desvio no labirinto, Casa das Artes de Tavira, Portugal.
Arte, Resistência e Cidadania, Assembleia da República, Lisboa, Portugal.
2017
11º Prémio Amadeo Souza Cardoso, Amarante, Portugal.
In Ictu Oculi, Galeria Art Nueve, Múrcia, Espanha.
Lying Behind the Glass, Casa Esperança, Braga, Portugal.
Diálogos no Acervo, Centro Cultural Português do Camões, Vigo, Espanha.
2016
Máquina do Mundo, Espaço Z42, Rio de Janeiro, Brasil.
Periplos / Arte portugués de hoy, CAC Málaga, Espanha.
Responsabilidade social, Arte & Negócios 2016, WeArt, Agência de Arte, Porto Business School, Porto.
2015
Trio Bienal, Rio de Janeiro, Brasil.
Consequência do Olhar – paisagens na colecção MG, Espaço Adães Bermudes, Alvito.
Rota das Catedrais. Sete Instâncias de Transcendência, Concatedral de Miranda do Douro, Miranda do Douro.
XVIII Bienal de Cerveira, Vila Nova de Cerveira.
Identidades: variáveis convergentes, Casa-Museu Abel Salazar, Porto.
Entre outros, Galeria Presença, Porto.
Pode encher a sua piscina, mas não esvazie a minha bacia, 15′ de FAMA – 6ª edição, Bienal da Maia.
2014
Teoria da Pintura, AISCA. Viana do Castelo.
3/4 São Arte 1/4 é História, Maus Hábitos Espaço de Intervenção Cultural, Porto.
CORRESPONDÈNCIES Lisboa-Barcelona, Espai Mallorca, Barcelona, Espanha.
As Instalações na Coleção do Museu, Museu da Bienal de Cerveira, Cerveira.
Fortuna e Magnetismo depois do Sono, Casa Museu Marta Ortigão Sampaio, Porto.
Projecto Troika, em construção, Edifício AXA, Porto.
18º Programa de Exposições, Carpe Diem Arte e Pesquisa, Lisboa.
Prometheus fecit: Terra, Água, Fogo e Mão, Museu Soares dos Reis, Porto.
PORTO – BERLIM – NOVA IORQUE, Maus Hábitos Espaço de Intervenção Cultural, Porto.
2013
Visões do Desterro, Caixa Cultural do Rio de Janeiro, Brasil.
2012
Solo Object, ARCO 2012 (Galeria Ybakatu), Madrid.
Die Heimat, Global Art, Porto.
Domínio, Maus Hábitos Espaço de Intervenção Cultural, Porto.
Projecto Correspondência / Portugal-México, Museo de Arte Préhispanico Rufino Tamayo, Oaxaca, México.
Projecto Correspondência / Portugal-México, Galeria Neter, Cidade do México.
Obras da Colecção Câmara Municipal da Maia + Artistas Convidados, Fórum da Maia Colecção Mário Altavilla Canijo/Maus Hábitos, Projeto On.Off – Laboratório de Criatividade Urbana , Fábrica Asa, Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura, Guimarães.
5+5, 5 Artistas 5 Projetos, Projeto On.Off – Laboratório de Criatividade Urbana , Fábrica Asa, Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura, Guimarães.
2011
Mystique, Coleção CGAC, ARCO/IFEMA, Igreja da Universidade, Santiago de Compostela.
Quatro Elementos, Quatro Artistas, Projecto do Museu Colecção Berardo para o Centro Colombo, Lisboa.
Domínio, Centro Emmerico Nunes e Capela da Misericórdia, Sines.
Livro-Mundo, Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira.
XVI Bienal de Cerveira, Vila Nova de Cerveira.
2010
Cantos da Casa, Casa da Galeria, Santo Tirso.
Lugares de Incerteza, Look up! Natural Porto Art Show, Palacete Pinto Leite, Porto.
Small is Beautiful, Caroline Galeria Pagès, Lisboa.
Topologias, Casa da Galeria, Santo Tirso.
1 Século, 10 Lápis, 100 Desenhos: Viarco Express, Torre da Oliva, São João da Madeira (cat.).
Cidade de soños–Natureza con arte, curadoria de Cuqui Piñeiro, Xardíns do Pazo de Castrelos, Vigo.
2009
XV Bienal de Cerveira, Vila Nova de Cerveira (cat.).
Inéditos, Galeria Presença, Porto.
1 Século, 10 Lápis, 100 Desenhos: Viarco Express, Museu da Presidência da Republica, Lisboa (cat.).
Do séc. XVII ao séc. XXI: além do tempo, dentro do Museu, curadoria de Fátima Lambert, Palácio dos Carrancas, Museu Soares dos Reis, Porto (cat.).
Mostra XV Bienal de Cerveira, LX Factory, Lisboa (cat.).
2008
5 minutos de fama, Galeria Extéril, Porto.
Superfícies Minimales, Galeria Goran Govorcin, Santiago de Compostela.
2007
Video killed the painting, The Centre for Contemporary Arts, Glasgow Video show, Box Gallery, Akureyri, Iceland Salon.
Européen des Jeunes Créateurs, Varias instituições na Europa.
2006
Mostra de vídeo, Museu nacional da Historia Natural (org. por Galeria Sopro), Lisboa (cat.).
Arquivar Tormentas, curadoria de Seve Penelas Galician Centro Galego de Arte Contemporânea, Santiago de Compostela (cat.)
Rompecabezas, Galeria Esther Montoriol, Barcelona Salon Européen des Jeunes Créateurs, Varias instituições na Europa.
2005
Last show, Galeria André Viana, Porto.
5 minutos de fama, Extéril Gallery, Porto.
2004
Portugal: 30 artists under 40, Stenersen Museum, Oslo (cat.).
Happy Darkness, Galeria André Viana, Porto.
Outro Lugar, Galeria Virgílio, São Paulo.
2003
III Prémio de Escultura City Desk, Centro Cultural de Cascais (cat.).
Sem Título, Espaço Maus Hábitos, Porto.
II Prémio de Arte Erótica, Gondomar.
Escultura na cidade, organizado pelo Departamento de escultura em Pedra do Centro cultural de Évora, Évora (cat.).
2002
New Art, Barceló Sants Hotel (org. por Espaço Maus Hábitos, Porto), Barcelona.
2001
Arte no Porto no Sec. XX, Galeria Municipal Almeida Garrett, Porto.
Sem Título, Espaço Maus Hábitos, Porto.
XI Bienal de Cerveira, Vila Nova de Cerveira (cat.).
I Prémio de Arte Erótica, Gondomar IN_BLOC, Espaço Maus Hábitos, Porto.
2019
PANO, Évora, 2019.
2016
Rebater uma árvore, Parque da Devesa, Famalicão.
2013
A meio entre isto e aquilo, Jardim das Virtudes, Porto.
2010
Universidade de Aveiro.
2009
Os dados estão lançados, Maia.
Monopoly, Vila Nova de Gaia.
O Livro, Felgueiras.
2006
Silêncio, La Coruña, Mariñan.
2005
Parla! A arte do silêncio, Vila Verde.
2004
Câmara de Lobos, Madeira.
Um… dois… três… Experiência! Cantanhede.
2001
Terra, zinco e pão com manteiga, Montemor-o-Novo.
A cultura saiu á rua num dia assim, Melides.
2000
O chão que me sustenta, São João da Madeira.
Belmonte.
1999
Sernancelhe.
1997
Braga.
Coleção de Arte Contemporânea do Estado (CACE).
Coleção de Arte Fundação EDP (MAAT), Lisboa.
Centro Galego de Arte Contemporânea (CGAC), Santiago de Compostela, Espanha.
Fundação PLMJ, Lisboa.
Coleção Municipal de Arte, Porto.
Coleção Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso, Amarante.
Fundação Edson Queiroz, Fortaleza, Brasil.
Fundação Caixanova, Espanha.
Museu da Bienal de Cerveira, Vila Nova de Cerveira.
Câmara Municipal de Vila Nova de Cerveira.
Water Closet 11, LX Factory, Lisboa.
Coleção MG, Alvito.
Galila Barzilai Hollander, Bruxelas, Bélgica.
Coleções privadas em Portugal, Estados Unidos da América, Brasil, Austrália, Espanha, Dinamarca, França e Bélgica.
textos
O ready made foi uma bomba de implosão no sistema da arte. Uma arma de destruição maciça. Ao arrasar toda a mitologia de raiz romântica que se tinha construído à volta da obra de arte e da sua suposta “aura”, ele refunda não só a arte contemporânea mas sobretudo o sistema de relações e de precedências que se tinha construído à sua volta. A obra deixou de ser o objecto mais intangível e passou a poder ser qualquer objecto, mesmo um mictório. Ao levar o “seu” mictório para o campo da arte, ao rodá-lo e ao chamar-lhe “fonte”, Marcel Duchamp vira do avesso a relação do mundo com o museu. Agora, ao museu (de arte contemporânea), pode chegar qualquer coisa desde que tenha sido transportada por um artista. Este trabalho de Isaque estabelece uma subtil ironia com o conceito de ready made que, depois de Duchamp, foi glosado infinitamente. É, além disso, um objecto paradoxal na sua relação com o design. Apesar de produzido em série, todos os números são diferentes, não tanto pela intervenção directa do autor, não tanto por necessidade, mas sobretudo por acaso. A cozedura cerâmica das peças precipita aleatoriamente diferentes inclinações. No fim, cada trabalho é único, reivindicando o estatuto de design personalizado. Ou seja, novamente, de obra de arte.

Duchamp tinha virado do avesso o mundo da arte com o seu ready made. Isaque vira do avesso a ideia de ready made com o seu “Made For It”. Estamos perante um objecto que decidiu fazer uma rotação de 360 graus, ou seja, voltar ao lugar para onde tinha sido pensado, a casa de banho, oferecendo-se às mais diversas utilizações (desde toalheiro a vibrador imóvel, passe o oxímoro). O ready made de Duchamp tinha saído da casa de banho e, finalmente, chegado ao museu. O “Made For It” foi desenhado por um artista, produzido industrialmente numa fábrica de louça de casa de banho (ostenta orgulhosamente o carimbo da cerâmica de Valadares), mas foi directo para o local apropriado nâo lhe sendo permitidas outras veleidades. Todavia, só temporariamente. Provavelmente insatisfeito com a dimensão solitária dos vícios privados que estimulava, decidiu agrupar-se com os outros elementos dessa produção em série e, de uma forma milagrosa, transformar-se nesse impressivo painel que tem como título o milagre da transformação: “São Rosas Senhor…são Rosas!”. Afinal estávamos enganados. Trocaram-nos as voltas. Eram só rosas. Como se a arte se alimentasse desse jogo de sombras que a polissemia dos objectos permite. De resto, o que já Duchamp tinha intuído e Isaque confirmou.
Paulo Cunha e Silva, Maio 2003
«Teremos dado um poderoso contributo para a Estética quando tivermos chegado não apenas à compreensão lógica, mas sobretudo à certeza imediata da intuição segundo a qual a evolução da arte assenta o seu fundamento na dualidade do génio apolíneo e do génio dionisíaco: à semelhança do que acontece com a dualidade dos sexos que vai gerando a vida no curso de uma luta perpétua apenas semi-interrompida por reconciliações periódicas.» Nietzsche (in “A Origem da Tragédia”). Um dos elementos centrais da obra de Isaque consiste na recriação artificial de matéria orgânica, trabalhando materiais como o mármore, a cerâmica ou o inox. Materiais esculpidos, moldados, transformados em formas representativas de objectos como uma luva de borracha, um desentupidor, um preservativo, livros ou até carne ensanguentada. Mas o termo mais correcto é mesmo “recriação”, não “representação”. As esculturas criadas por Isaque não são meras figurações, meras metáforas, mas objectos concretos que possuem uma utilidade e uma dinâmica próprias. E assemelham-se de tal maneira com matéria orgânica que, por vezes, somente um olhar mais próximo e atento ou a capacidade de toque conseguem desmascarar a ilusão de óptica relativamente ao material que compõe cada obra. São obras ousadas, irónicas, provocadoras, com uma forte ideologia inerente a cada uma delas. Como talvez a mais paradigmática e irreverente escultura de Isaque, o “Made For It”, que procura inverter totalmente o conceito “Ready Made” de Marcel Duchamp, ao criar de raiz um novo objecto que nunca havia sido produzido anteriormente e colocá-lo ao serviço da comunidade, designadamente numa casa de banho pública, com a assinatura da fábrica e não do criador. Trata-se de um objecto de forte conotação sexual, com uma forma declaradamente fálica, cuja utilidade fica ao critério da imaginação de cada um. Seja para servir de assento, para pendurar o casaco ou para outras actividades mais impróprias de descrever. A cada nova exposição, Isaque procura explorar diferentes formas de apresentação das suas obras, não se limitando a um modelo restrito e inerte. O “Made For It”, por exemplo, foi alvo de diversas mutações. Vários exemplares desta obra foram colocados juntos numa parede, dispostos em círculo, originando a instalação “São Rosas Senhor…são Rosas!”.

Numa outra versão desta instalação, foi projectado um vídeo da autoria de Fabio Massimo Iaquone na parede, com as imagens a aparecerem por debaixo dos objectos, conseguindo-se gerar novos efeitos a partir da mesma peça. A procura incessante de novos conceitos, novos formatos, novas perspectivas, numa obra que nunca está inteiramente terminada, mas em constante mutação e adaptação. Mobilidade em vez de conformismo. Ou a permanente insatisfação do criador perante o resultado final. A instalação “Hoje Amo-te”, por sua vez, aborda o culto do imediato e a extemporaneidade das relações amorosas nos dias que correm, tocando ao de leve na dissimulação encoberta entre o sexo e os sentimentos, de uma forma imensamente provocadora. Os lençóis brancos suspensos no ar, com a inscrição “Amo-te” marcada a vermelho vivo, remetem para um certo tipo de intimidade que se confina apenas ao reduto da cama, aos lençóis destapados que indiciam a entrega de algo ao outro, a partilha. Em suma, ao acto sexual. Carnal. Como que anulando qualquer tipo de romantismo, de amor, sendo a expressão “Amo-te” cada vez mais vulgarizada, utilizada em vão. Sem valor. Sem verdade. No entanto, sob uma perspectiva oposta, o vermelho demarcado das letras encarna um certo tipo de paixão fogosa, momentânea mas sincera, fugaz mas intensa, tornando possível o amor, ainda que em circunstâncias especiais, e limitado a um determinado momento. Um dia, uma noite. Porque um verdadeiro romântico consegue encontrar o amor em tudo, em todo o lado, sobretudo onde ele não existe nem nunca existirá. A tentativa de provocação é estendida a diversos níveis do sistema social. Noutra das peças apresentadas na referida instalação, um livro aberto, uma bíblia com todas as páginas em branco, esconde no seu interior um preservativo, omnipotente. As páginas do livro são desfolhadas aleatoriamente através de uma fonte artificial de vento, concedendo um interessante carácter de improvisação a uma peça que de outra forma permaneceria estática. Isaque gosta de incutir movimento e espontaneidade nas suas exposições, não se limitando a apresentar as suas peças imóveis e sem qualquer tipo de intervenção exterior e interacção com o público. Pretende deste modo quebrar a densa redoma de vidro que separa os objectos criados do mero observador, fomentando a relação entre estes dois elementos, sob a sua influência directa de criador e mentor de todo um conceito alinhavado ao longo de diversas instalações expostas num determinado espaço, num determinado tempo, de uma determinada forma. Uma experiência sensorial perante a qual dificilmente alguém fica indiferente. No conjunto da obra de Isaque existem outras peças igualmente essenciais. Como a luva de borracha, intitulada “Amor De Mão”, trabalhada em mármore. Uma peça tão semelhante à borracha que quase que é preciso tocar-lhe para ter a certeza de que se trata, de facto, de pedra. A luva está cheia, parece que vai rebentar a qualquer momento, parece estar repleta de matéria orgânica, talvez excremento, esterco, ou sangue. É simplesmente brilhante a forma como Isaque consegue recriar formas no mármore. Parece autêntico, parece vivo, parece real. Tal como a carne recriada na obra “Mal Me Quer, Bem Me Quer, Muito, Pouco Ou Nada…”, igualmente trabalhada em mármore, igualmente demasiado real. Isaque recria a carne ensanguentada, crua, vermelha, e coloca-a na grelha, pronta para ser cozinhada. No chão estão dispostas diversas tigelas brancas prontas a receberem o alimento desejado, a carne, fruto predilecto do mais básico instinto humano. As peças criadas por Isaque conseguem originar sentimentos muito diversos e especiais. A ironia, o sarcasmo, a provocação, elementos racionais, aliam-se com grande destreza a elementos mais oníricos, como o desejo, o erotismo, o amor, sempre com uma irreverência muito marcada, muito própria. O sonho e a embriaguez. Como se o mundo dionisíaco se unisse ao mundo apolíneo em cada uma das suas peças, gerando uma harmonia muito próxima da perfeição. Mas não é a procura da perfeição que move Isaque, nem mesmo a procura da verdade absoluta das coisas, mas sim os sentimentos, o prazer, a beleza, a vontade de viver. É precisamente nesse mundo hedónico que mergulhamos quando exploramos uma exposição da sua autoria. E dificilmente queremos voltar a sair de lá. Como uma droga que não nos larga mais. Uma paixão. Uma permanente tentação. Mal me quer, bem me quer, muito, pouco ou nada, questiona Isaque.
Gustavo Sampaio, 2003
“El contenido es hoy el mensaje erótico: todo lo que tiene lugar como resultado de la presencia de dos personas. Placer, dolor, supervivencia, en público o en privado, en un mundo real o imaginario”. Louise Bourgeois. Isaque Pinheiro corresponde a la joven generación de artistas que, con una producción visual lúcida e innovadora, insertan a Portugal en el mapa de la contemporaneidad artística global. En ese panorama, Isaque se destaca por el rescate del ejercicio más puro de la escultura, a través de una disciplina del oficio que retoma los métodos de confección y manualidad plástica frente al extendido uso de las nuevas tecnologías; y lo hace asumiendo plenamente la natural fluidez de la producción artística contemporánea, así como las particularidades de su territorio geográfico y emocional específico. La muestra diseñada para Galería Animal es una narración atemporal que se fundamenta en las situaciones, tanto escenográficas como internas, producidas por el vínculo erótico- emocional; deseo, placer, tensión, amor, (des)encuentro y dolor, componentes intrínsecos de las relaciones amorosas, van descubriéndose a través de un montaje que da cuenta de momentos sexuales ya vividos. Por tanto, no estamos en presencia de la escenificación del acto sexual mismo, sino de su registro, huella e insinuación. La atmósfera de ‘Hoje Amo- Te’ es húmeda: la humedad es sugerida por las sábanas colgadas que se “secan” en el espacio expositivo, después de algún arduo encuentro erótico; a su vez, las toallas, dispuestas en determinados puntos de la sala, nos remiten al sudor.

Ambos elementos, sábanas y toallas, nos indican dos características importantes del trabajo de Isaque: primero, el desplazamiento del concepto escultórico, y luego, la relación de la manufactura artesanal- artística con la industria. Las sábanas de la muestra están secas, pero se infiere que fueron lavadas después de que sobre ellas tuvieran lugar encuentros eróticos. De este modo, se mezclan en ellas la química industrial del detergente con las secreciones sexuales de los amantes. Esa interacción líquida señala la íntima relación de los conceptos emoción- objeto- industria en la producción de Pinheiro. Las sábanas, cual esculturas blandas, están serigrafiadas con la palabra Te Amo escrita en idioma portugués, para que, tal como en la noche de bodas gitana, cuelguen con la marca roja que testifica la consumación del acto sexual. La posibilidad práctica de utilizarlas en la cama y/o de colgarlas en cualquier sitio, indica un traspaso en la frontera aurática de la obra de arte, cuestionando la (in)utilidad del objeto artístico, su relación con el diseño industrial y la pérdida del control expositivo por parte del autor. En ‘Hoje Amo-Te’, las blancas sábanas de algodón van subdividiendo el espacio de la exposición, y de este modo forman microclimas: un área abierta para el entrenamiento físico y la descarga de furias, un sector privado para otro tipo de descarga, la sexual, un pequeño espacio unipersonal para el encuentro íntimo con el diario de vida de un supuesto galán….con sus hojas en blanco!

En cada zona, esculturas de bronce, cuero, porcelana y mármol dan cuenta de la dedicada e inevitable habilidad plástica de Isaque. Inevitable porque estas obras son una especie de exorcismo: como afirma Bourgeois, ‘cada día has de abandonar tu pasado o aceptarlo. Si no lo puedes aceptar, te conviertes en escultor’. Pero de todas las obras expuestas, hay unas que destacan no tanto por su preciosismo, sino más bien por su propuesta conceptual. “Made For It” es una serie de piezas de porcelana similares entre sí, de la que Isaque diseñó un modelo original; luego encargó su factura y reproducción a la empresa Valadares, la más antigua fábrica de artefactos sanitarios de Portugal; paradójicamente, fue una suerte de azar industrial la que determinó que cada pieza fuera distinta, debido al procedimiento de cocción en horno de la porcelana.

La intención de cada “Made For It” es comportarse como una revisión lúdica del famoso gesto de Duchamp; aquél urinario convertido en obra de arte por denominación del artista, tiene aquí una respuesta que no le rinde la común pleitesía a la obra clave en el arte del siglo XX. Este nuevo carácter subversivo queda clarificado en el hecho de que, normalmente, éstas piezas se presentan colocadas en baños públicos. La relación entre “Made For It” y el urinario de Duchamp se comprende mejor con el siguiente esquema:

‘Hoje Amo-Te’ presenta, por tanto y además, una circulación en tres niveles del “aura”: desde la unicidad irradiante de cada pieza escultórica, hasta la pérdida total de aura en la sábanas, reproducibles y potencialmente utilizables; y en un pliegue intermedio, cada “Made For It”, único en su forma y distintos unos de otros, se presenta a su vez como producto de un sistema mecánico/industrial de reproducción, donde se funde el original y el múltiple, deviniendo la consiguiente desauratización. ‘Hoje Amo-Te’ es también una temporalidad suspendida….decir “hoy” es hacer un zoom in a un aspecto de la vitalidad que genera la pulsación erótica. Los afectos nacen, crecen, envejecen y mueren. Están vivos, igual que quien los siente. Hoy no experimentamos lo que ayer, ni mañana lo que hoy, porque ni ayer, ni hoy ni mañana somos los mismos. Y en Animal hubo un “Hoy” lleno de ausencias, un presente detenido compuesto de fragmentos de pasado… Pero de este modo, si cada pieza y el conjunto en sí de la muestra se presenta como una secuencia de escenas en pausa, la intrínseca cualidad de registro es entonces perennidad sometida a potencial reactivación…si hubo un ayer, hay un mañana para un continuo Hoy Te Amo.
Natalia Arcos Salvo Curadora, 2003
A análise da obra de Isaque Pinheiro revela alguns indícios de coincidência, que podem trazer pelo menos uma hipótese: a de que a sua motivação criativa se encontra plenamente preenchida quando expressa as vicissitudes do processo ontológico em que está inserida. É possível constatar que esse processo ontológico se caracteriza pela circulação entre duas polaridades, entre dois princípios energéticos, antagónicos mas complementares: um positivo, outro negativo, um centrípeto, outro centrífugo, um feminino, outro masculino. Podemos designá-los usando referências como as de Animus e de Anima, os termos latinos pelos quais Jung identifica o dinamismo dual do psiquismo profundo, e que Bachelard emprega para elucidar a sua psicologia do devaneio poético: o devaneio do criador de imagens, que sonha o mundo – os seus objectos e a sua matéria – realizando-se, por meio dessa experiência de unidade psíquica, como ser imaginante, integral. Esta oposição é estabelecida na simbólica tântrica hindu como Yoni e Linga, respectivamente o princípio psico-cósmico feminino, simbolizado na fertilidade e na gestação, e representado em ícones figurando a vulva, e o princípio psico-cósmico masculino, simbolizado na regeneração, na destruição e na renovação, e representado em ícones figurando o falo[1]. A obra descreve a integração complementar destas duas polaridades ou princípios, o trânsito entre ambas. Trabalho após trabalho, o autor apresenta sucessivos diagnósticos ontológicos, correspondentes ao estado de circulação entre as polaridades em diferentes etapas biográficas, à medida que vão decorrendo. Os elementos de iconografia são símbolos da interacção diacrónica entre ambas, e transmitem – mais do que comunicam – a narrativa mítica do ser imaginante que sonha o material do mundo. Os conteúdos plástico e poético da obra incorporam a realidade psíco-física do sonhador – são dotados de carga simbólica, de poder energético primordial, de força mágica. A linguagem da iconografia, figurativa ou elementar, comprova a eleição de um escasso número de objectos da realidade como ícones ou signos de conteúdo, que se impõem pela concentração de carga simbólica. O trabalho de Isaque Pinheiro caracteriza-se por uma evidente legibilidade cognitiva, notória na economia da comunicação plástica – morfológica, cromática, material – que permite o reconhecimento dos signos (objectos e formas) e da sua fenomenologia; caracteriza-se ainda por uma síntese conceptual coesa, na qual as conotações significantes dos signos combinam vários estratos iconológicos, em conexão familiar e lúdica, automática e paradoxal. [1]A legitimação do princípio psico-cósmico feminino (shakti) ocorre no período da dinastia Gupta, ao longo da segunda metade do primeiro milénio d. C., em consequência do estabelecimento da escola tântrica, de síntese das diversas tendências que constituíam o hinduísmo da época. O proselitismo desta escola, que se torna dominante durante a era tântrica-purânica, de 500 a 1300 d.C., dever-se-á também ao facto de esta ter conseguido uma integração das crenças e práticas populares rurais, predominantes nas extensas áreas rurais, e que consistiam frequentemente em cultos locais a divindades femininas, símbolos da fertilidade, herdadas de antigos cultos pré-históricos; FEUERSTEIN, Georg, A Tradição do Yoga, Ed. Pensamento, São Paulo, 1998. Um fluxo entre dois pólos Na obra de Isaque Pinheiro, a circulação entre dois pontos, que refere um tipo de relação interactiva entre duas polaridades, aparece resumida na ideia de fluxo e, mais concisamente, na ideia de circuito, simbolizando o dinamismo do devir pessoal. Uma das primeiras peças do artista, em granito negro, de 1992, é um lavatório colocado na vertical, cujo ralo comunica directamente com uma torneira, colocada na parte de trás (anteriormente parte de baixo) do mesmo. Nessa peça, a ideia de circuito fica patente na recriação de um vínculo de circulação estabelecido entre dois objectos reconhecidamente significantes e conotativos de corrente, ou curso – o ralo e a torneira – mas numa ordem errada, do ralo para a torneira. Esta ligação ilustra uma direcção impossível ou absurda para a lógica da realidade empírica ou natural, porém simbolicamente verosímil enquanto metáfora optimista, manifestando o material energético de um momento impulsionador, o ralo-torneira como ponto de passagem em que o escoamento da corrente de matéria usada dá origem, directa e instantaneamente, a uma corrente de matéria nova, ou como anel de filtragem, dando passagem a uma corrente de matéria permanentemente purificada. A mesma ideia de fluxo de materiais e energias em circuito de reciclagem está patente no trabalho Domus, em mármores diversos, de 1994. Este trabalho reúne o catálogo quase completo dos signos que caracterizam as peças realizadas na primeira metade dos anos noventa. Um armário com um urinol acoplado atrás; sobre o armário um lavatório/televisor com uma torneira acoplada atrás, ficando esta directamente acima do urinol; sobre o lavatório/televisor, um vaso com uma flor, e um cabo ligando a zona de despejo do urinol até uma ficha de ligação eléctrica na base do vaso acima. Na narrativa mítica deste sobrecarregado circuito surreal, a corrente de matéria fluída que é lançada pela torneira para o urinol é elevada, transportada em sentido ascencional, até à base do vaso situado acima, onde cresce a flor. Posteriormente, na metáfora de fluxo ou circuito, alguns signos sugerem a projecção de feixe de matéria, representando a ideia de transmutação, de uma evolução no estado elementar da matéria. Na peça Curto-circuito (1995), em mármore ruivina, um cabo eléctrico descreve uma recta que atravessa a superfície da pedra, e detém-se no aro de um ralo fechado com a respectiva tampa, constituindo uma visão metafórica da incompatibilidade elementar de canais e circuitos de energia. No trabalho Canalização (1995), em mármore e ferro, um televisor emite luz, iluminando um sofá à sua frente, no assento do qual repousa um cálice. Numa lógica de realismo natural, o peso do cálice deforma o assento do sofá e, numa lógica metafórica, a sombra gerada pelo cálice ganha peso e deforma o encosto do sofá. Uma energia imaterial, subatómica, ganha realidade material, causando um efeito tridimensional, concretamente plástico. O sonhador de objectos É possível caracterizar a preferência por certos objectos do quotidiano. São objectos indispensáveis ao longo do dia, importantes na rotina individual de quem vive num corpo, lavando-se, alimentando-se, preparando ou excretando os alimentos, efectuando os gestos que realizam essas acções. São objectos não conspícuos, invisíveis pela vulgaridade da sua presença universal, todavia frequentemente percepcionados e sonhados: investidos de carga simbólica. Existem em espaços para uso reservado ou privado, e estão fisicamente presentes na realidade próxima que circunda a realização de tarefas privadas ou acções íntimas, suscitadoras de momentos de atenção subjectiva, de introspecção, de devaneio poético. «O devaneio de objectos é uma fidelidade ao objecto familiar. A fidelidade do sonhador ao seu objecto é a condição do devaneio íntimo. O devaneio alimenta a familiaridade. (…) Os objectos privilegiados pelo devaneio tornam-se o complemento directo do cogito do sonhador. Dizem respeito ao sonhador, sustentam o sonhador. São, na intimidade do sonhador, os órgãos do devaneio. (…) O cogito difuso do sonhador de devaneio recebe dos objectos do seu devaneio uma tranquila confirmação da sua existência»[2]. A linguagem figurativa deste período inicial de criação artística, de um naturalismo realista, indica a prevalência deste mesmo devaneio, mas também um reforço do elo de intimidade que une o sonhador aos objectos do seu devaneio. O virtuosismo manual que mimetiza objectos do quotidiano, transforma a matéria de suporte com uma habilidade intuitiva que demonstra o conhecimento empírico e a familiaridade que o artista detém, tanto com o objecto do devaneio, como com a matéria de suporte, que passa a ser também objecto de devaneio. Os objectos identificam o sonhador: Isaque é o mestre de obras perfeccionista e devotado que remodela com profissionalismo qualquer divisão de uma casa, é o artista encantado pelas imagens que lhe são trazidas pela matéria, pelos objectos e materiais com os quais trabalha. «Subitamente, uma imagem coloca-se no centro do nosso ser imaginante. Esta retém-nos, fixa-nos. Infunde-nos de ser. O cogito é conquistado por um objecto do mundo, um objecto que, só por si, representa o mundo. (…) O sujeito do devaneio fica espantado ao receber a imagem, espantado, encantado, acordado. (…) O devaneio poético é sempre novo perante o objecto ao qual se liga. De um devaneio ao outro, o objecto não é o mesmo, renova-se e essa renovação é uma renovação do sonhador (…) o seu cogito não está dividido pela dialéctica do sujeito e do objecto»[3]. [2]BACHELARD, Gaston, La Poétique de la Rêverie, PUF, Paris, 1986, p. 143. [3] BACHELARD, Gaston, La Poétique de la Rêverie, PUF, Paris, 1986, p.132, p.131, p.135, p.140. Desacerto nas polaridades conjuntas: logros na matéria Por outro lado, os mesmos objectos relacionam-se com a passagem de líquidos, com a circulação de material fluido, e comportam a sugestão subjacente de desenvolvimento e disseminação de matéria genética, mantendo latente a identificação dos signos como respeitantes a uma função feminina ou a uma função masculina. Um desentupidor, em mármore azul cascais (1994) é simultaneamente yoni, na ventosa, e linga, no cabo, tendo como utilidade prática desobstruir a circulação, e assinalando simbolicamente a plenitude da relação entre dois seres individuais.

O mesmo objecto ocupará o lugar central na peça Lar, doce lar (1995), reiterando o testemunho de completude e preenchimento, em repouso sobre a sua pequena cama. Na segunda metade dos anos noventa, a obra de Isaque Pinheiro acompanha as vicissitudes biográficas, evoluindo sob a influência dos eventos afectivos que lançaram esta iconografia figurativa de identificação de género. O sonhador da matéria projecta a sua decepção ensaiando logros na matéria: pendurado de um cabide, um pequeno armário de cartão guarda vestimentas em mármore (1996).

A ideia de fluxo ou circulação desaparece, os cordéis que atam as formas encerradas não são condutores. O artista encontra o embrulho como objecto de devaneio. Esculpe em mármore e reveste algumas partes com cartão, montando um engano prodigioso para a perplexidade do observador: uma caixa de cartão atada com barbante de pedra, ou um papel de pedra embrulhando uma caixa de cartão. A sequência de embrulhos tem a sua origem numa peça não executada, cuja ilustração de projecto mostra os restos de embrulho envolvendo ainda uma estante de livros. O livro adquire uma conotação específica, ícone literal representando a linguagem sem comunicação, simbolizando um animus anti-anima: o cogito que pensa em desacordo com o cogito que devaneia. A caminho de suscitações imaginativas fundadoras O sopro de enlevo íntimo regressa em 2000, com uma iconografia de formas elementares, pregnantes, primeiro não figurativas, mas figurativamente sugestivas, com aplicação de objectos realistas e, mais tarde, explicitamente figurativas e realistas. Adanarg, anagrama de granada, é uma pequena esfera de mármore à qual foi aplicada um ralo e um cordão de ligação com a respectiva tampa de borracha na ponta.
O artista regressa ao devaneio de objectos familiares, reactivando a simbologia de fluxo, de circulação de fluidos, trabalhando os mesmos materiais rígidos (pedra, metal) mas agora usando formas redondas, simulando materiais morfologicamente extensíveis, elásticos, insufláveis. Num exemplo posterior, de 2002, de objectos deformáveis e contentores de fluidos imateriais, Isaque executa virtuosamente, em mármore, um balão ainda com ar, cingido em várias voltas por um fino cordão de esferas metálicas.
Se Adanarg é um receptáculo, um signo figurando o feminino, “Made For It” (2001) é a figuração de um falo.
A única peça da obra de Isaque com título em língua inglesa, feito em cerâmica de Valadares como se lê no logotipo, “Made For It” é um desmesurado cabide fálico para colocar na casa de banho, uma inversão da descontextualização preconizada pelo ready-made mais famoso de Marcel Duchamp, Fountain de H. Mutt. Bem me quer, mal me quer, muito, pouco, tudo ou nada, de 2002, é um auspicioso devaneio a partir da matéria, que anuncia o artista liberto do entretenimento dos logros, e motivado por suscitações imaginativas fundadoras. Em cenários diferentes, o artista apresenta um conjunto de várias grelhas para assar, cada uma comprimindo uma posta de mármore, figuração simbólica da carne do planeta. Uma das postas conserva restos de um clássico desenho de tatuagem: “amor de mãe”.
A instalação Hoje amo-te (2003) constitui um painel de resumo retrospectivo da obra, mostrando as sucessivas etapas da indagação interior do artista no percurso de regresso ao ser imaginante em plenitude: os lençóis Amo-te; a pele de couro estendida sobre a qual repousam dois “Made For It” acoplados pela base; o volume pendurado, revestido a couro, deixando à vista um pedaço de mármore que busca persuadir o observador de que o volume escondido não é feito de enchimento; e, finalmente, um grande livro de páginas em branco, aberto, exibindo um volume recortado no qual repousa, feito em mármore, um preservativo usado e vazio, fechado por uma abertura de insuflar em latão – a derradeira ilustração do anti-anima: o cogito do pensador, simbolizado no livro, encerrando o cogito do sonhador, simbolizado no preservativo usado e vazio, resíduo do impulso de renovação e regeneração do ser imaginante.
A peça Amor de Mão (2003) elucida-nos acerca de mais uma etapa na reactivação da simbologia de fluxo, por meio da já ensaiada iconografia de objectos deformáveis pelo sopro: uma peça de mármore imita em grande escala (75x75x30cm) uma luva cirúrgica insuflada; uma forma redonda, grávida, prefigurando cinco falos, correspondentes aos cinco dedos da luva.
Antecedendo a presente exposição, Isaque realiza o vídeo Onde há fumo há fogo (2004) em co-autoria com Rute Rosas: trata-se de um cerimonial de amor, em que dois amantes fazem looping com fumo de cannabis. Num grande plano com as duas cabeças de perfil, Rute e Isaque, par isomorfo, aproximam-se e afastam-se para, repetidamente e à vez, soprar e aspirar, da boca um do outro, o fumo dos deuses. Impacto, a energia é a forma da matéria O projecto das Mais Altas Esferas mostra vários painéis de azulejo amolgados pelo impacto de esferas de mármore, que se apresentam revestidas a couro negro, apetrechadas com limpa pára-brisas e retrovisor. O meticuloso trabalho de modelagem e cozimento do couro, e a lógica iconográfica que associa esse paramento aos apetrechos de viação, ilustra a dualidade antagónica e complementar recorrente na obra de Isaque Pinheiro.
A simbologia de fluxo, de circulação que, até ao vídeo Onde há fumo há fogo, não era explicitamente cinética, é plenamente retomada: a forma esférica é sugestiva de uma acção locomotora, o resultado do impacto é sugestivo de um movimento no plano, dispensando a figuração de um circuito, representado por signos ou por percursos. Por outro lado, a montagem de flip-books fotográficos, que mostram sequências animadas do movimento da esfera, constitui uma reconciliação prática com um símbolo outrora representativo do devaneio impedido. Expressas numa iconografia figurativa, realista, mas elementar e conceptualmente articulada, as imagens sonhadas pelo artista asseguram-nos de que «o cogito do sonhador não segue preâmbulos complicados, é fácil, sincero, e está muito naturalmente ligado ao seu complemento de objecto», isto é, a energia é a forma da matéria.
Suzana Vaz, Junho 2004
Quando penso no início do meu caminho, lembro-me de uma frase de um sujeito que dizia: sabe… quanta gente se f… por lhe terem dito que tinha jeito para o desenho? É que foi mais ou menos assim que tudo começou. Nessa altura em que me deparei com o tal jeito para o desenho, era tão pequeno que nem sabia o que era desenhar, ou melhor, só sabia o que era fazer bonecos. Mas perante tal palavra dirigida a mim, que me parecera tão importante, fiquei curioso. E comecei naturalmente a estar mais atento a tudo o que estava ligado a esse mundo. Ou seja: fazia carrinhos de rolamentos, fazia croché e muitas outras coisas, mas a minha atenção focava-se principalmente no desenho. E foi num instante que surgiu a pintura e o mundo das artes plásticas. Fiquei maravilhado, tudo era apaixonante. Não havia volta a dar. A não ser que os meus pais me lembrassem do facto de eu não ser filho de gente com dinheiro, coisa que felizmente não fizeram…
Depois, as duas dimensões não chegaram, e com a terceira dimensão tornou-se tudo mais interessante. E com a sensação de que as três dimensões também não seriam o suficiente, lá vim caminhando entusiasmado e divertido com a ideia de que o que fazia em três dimensões pudesse ser uma projecção duma quarta. Comecei a perguntar-me se poderia encontrar nos conceitos daquilo que fazia, indícios dessa quarta dimensão? E é com esta pergunta, e a noção de que o que faço é em grande parte fruto duma incontrolável e (talvez) obsessiva necessidade de produção, que me lanço a tentar perceber que conceitos podem estar por detrás do que vou fazendo. E lá vou viajando, entre ideias, conceitos, técnicas, delírios, etc., sem saber se algum dia saberei o que faço. É claro que tudo isto dá pano para mangas e se torna tema de grandes conversas entre pessoas que dão o seu tempo a este tipo de coisas. E numa entre as muitas conversas que tenho com o meu amigo Frederico, eu tentava explicar-lhe como seria a instalação que tinha em mente para apresentar em Évora. Como de costume, comecei por lhe explicar a forma e materiais dos elementos que fariam parte da instalação: … são umas esferas de mármore que serão equipadas com limpa pára-brisas e uns fatos de borracha que fazem lembrar os barretes que se usam por baixo dos capacetes de Fórmula 1… E quase como se fossemos crianças, e por saber que imaginar é das coisas que mais gostamos de fazer, nos pusemos a imaginar que os objectos que dela fazem parte, serão como seres, organizados, que habitam um mundo paralelo, cuja comunicação com o nosso é ténue e quase inexistente. Que aparentam desempenhar funções desconhecidas e no entanto estão munidos de equipamento que nos é familiar! Será que usam esse equipamento da mesma maneira que nós? Chegam a parecer ter uma linguagem que nos poderá também ser familiar e ao mesmo tempo desconhecida. Não se percebe se poderiam ou não comunicar com o público de uma maneira explícita. E se sim, porque não o fazem? Ignoram-nos ? Ou simplesmente não nos vêm? E podem ver?… Imaginemos agora que invertemos os papéis. Com alguma facilidade consigo olhar para nós e ver criaturas que se movem de uma maneira estranha. Que se vestem de uma maneira estranha. Que têm equipamento desenvolvido, organizam-se e têm um objectivo desconhecido, difícil de explicar ou mesmo absurdo. Muitas vezes, perante uma grande dificuldade em compreender o meu meio, eu me pergunto… e agora? Que faço? E por amar a vida, e não desistir de viver, mesmo apesar de às vezes sentir uma grande impotência, registo incansavelmente o que sinto e o que vejo, como quem revela um retrato (negativo?), com a expectativa de que outros olhares, atentos, sobre o meu retrato e/ou o meu modo de ver, me tragam novos pontos de vista, para observarmos, discutirmos, etc., e seguirmos em busca de momentos de luz, que nos puxem pela imaginação para continuar a viver! Não sei se quem me disse, na minha meninice, que eu tinha jeito para o desenho sabia o que estava a dizer ou a fazer, mas foi por me terem dito que ainda hoje me dou ao luxo de sonhar!
Isaque Pinheiro, 2004
No ano passado a cidade do Porto foi invadida pelo graffiti presente nesta escultura. Este graffiti, da autoria de Caos, desde que apareceu não parou de se multiplicar e foi sem dúvida o graffiti que mais gente intrigou. Foi por isso um dos graffiti mais badalados na cidade. Esta escultura de co-autoria com Caos foi idealizada para ser apresentada na minha ultima exposição individual na galeria Presença (Porto), intitulada “Sombras da Ribalta”.
De muitos universos que podem fazer parte da inversão da expressão “Luzes da Ribalta” o universo do graffiti é um deles. Por isso prendemo-lo na galeria dentro de uma grelha, como quem serve algo de comer ao público. Esta escultura é em muito idêntica a outras feitas por mim anos antes, quando não havia perspectivas do meu trabalho ser apresentado a público numa Galeria de nome reconhecido. No entanto, numa visão mais rebuscada, poderia ficar a dúvida, se o graffiti foi tirado à rua ou se o Graffiter invadiu a galeria e se apropriou da obra de arte como suporte da sua expressão. Não posso deixar de referir um graffiti da autoria de Stak, feito na montra de uma galeria, de modo a ser lido desde dentro da galeria que dizia – we are free artists. Outside.
Isaque Pinheiro, 2006
No ano passado a cidade do Porto foi invadida pelo graffiti presente nesta escultura. Este graffiti, da autoria de Caos, desde que apareceu não parou de se multiplicar e foi sem dúvida o graffiti que mais gente intrigou. Foi por isso um dos graffiti mais badalados na cidade. Esta escultura de co-autoria com Caos foi idealizada para ser apresentada na minha ultima exposição individual na galeria Presença (Porto), intitulada “Sombras da Ribalta”.
De muitos universos que podem fazer parte da inversão da expressão “Luzes da Ribalta” o universo do graffiti é um deles. Por isso prendemo-lo na galeria dentro de uma grelha, como quem serve algo de comer ao público. Esta escultura é em muito idêntica a outras feitas por mim anos antes, quando não havia perspectivas do meu trabalho ser apresentado a público numa Galeria de nome reconhecido. No entanto, numa visão mais rebuscada, poderia ficar a dúvida, se o graffiti foi tirado à rua ou se o Graffiter invadiu a galeria e se apropriou da obra de arte como suporte da sua expressão. Não posso deixar de referir um graffiti da autoria de Stak, feito na montra de uma galeria, de modo a ser lido desde dentro da galeria que dizia – we are free artists. Outside.
Isaque Pinheiro / Rute Rosas, 2006
Na arte contemporânea costuma ser definida e avaliada em função de suas diferenças com relação ao passado modernista. Enfatizar, por exemplo, a apropriação em detrimento do fazer; a atitude do artista e não mais seus resultados (obras); a desmaterialização em lugar da formalização; o triunfo das imagens técnicas (fotografia, vídeo …) sobre as artesanais (pintura, desenho, escultura…) e, finalmente, a interatividade ou a imersão, em vez da contemplação, são certamente procedimentos críticos e curatoriais capazes de emprestar sentido à subjetividade que permeia as poéticas contemporâneas. No entanto, é preciso destacar, estes são critérios insuficientes para abranger a diversidade de outros repertórios e métodos que, embora floresçam nas bordas desses procedimentos hegemônicos, são também contemporâneos. Isaque Pinheiro situa-se num desses limites, já que em sua produção coexistem características (ou traços) da noção greco-romana de arte (tekhné /ars); da noção estética que se delineia entre a Renascença (séc. XV) e o Iluminismo (séc. XVIII) e, finalmente, de alguns repertórios temáticos e narrativos essenciais da contemporaneidade. Fundado na transformação da natureza pelo trabalho o conceito de arte greco-romano recobria as mais diversas formas da produção humana, e designava tanto objetos utilitários (tecidos, ferramentas, calçados, cerâmicas, etc.), quanto aqueles de função simbólico-religiosa (esculturas, tragédias, pinturas,etc.). Significava literalmente fazer e é até hoje um princípio observado por muitos artistas. O Iluminismo introduziu porém uma nova noção de arte que, embora não revogasse o fazer, passou a designar não mais quaisquer objetos produzidos pelo trabalho, mas objetos especiais, distintos do comum dos outros objetos, posto que destinados somente à contemplação estética (belas artes). No caso de Pinheiro fazer significa ter controle pleno da execução de idéias e projetos, concebidos exclusivamente para o devaneio poético e não a recusa de partilhar etapas do trabalho com outros profissionais em nome de princípios estéticos (partilha muitas vezes feita quando necessária). Tomado isoladamente esse diálogo de Isaque com a tradição poderia talvez levar àqueles ansiosos por definições precisas, embora quase sempre incapazes de captar o teor ambíguo e transitivo das sintaxes contemporâneas, a situar sua obra na contra-mão das questões mais evidentes, reconhecíveis ou típicas da arte hoje produzida. Mas, ao contrário, é justamente o deslocamento em relação a essas questões e sua inadequação aos critérios que permitiriam o reconhecimento, sem muito esforço, dos produtos culturais de nosso tempo (main stream) que empresta força singular ao trabalho desse artista. É impossível, portanto, pelo menos por ora, compreendermos a produção de Isaque sem o fazer e os objetos que dele resultam, pois seu compromisso com o mundo (bem como de parte significativa da produção contemporânea) se dá exatamente pela atualização desses procedimentos remanescentes de outros momentos históricos, aos temas e às narrativas da contemporaneidade. Não se trata pois de um mero regresso ao passado, mas da sobrevida de procedimentos que nunca desapareceram e foram, até a apropriação duchampiana (readymade) e a desmaterialização conceitual, únicos e essenciais para a produção artística. Narrativas visuais (obras que não mais resultam da pesquisa formal estrita, típica da modernidade, já que seu sentido é semântico e, por isso, transborda a auto-referência das formas puras); suportes (não mais restritos à pintura, à escultura e ao desenho) e materiais (couro, louça, fita adesiva…) não convencionais e a exploração da potência poética de objetos familiares do cotidiano ( capacetes, malas, roupas…), feita não por meio da apropriação, mas pela fabricação controlada pelo artista e sua combinação (edição) específica em cada trabalho, são indicadores do vigor contemporâneo da obra de Isaque Pinheiro. Apego a um Lugar, trata de um único tema, o deslocamento (entre lugares), desdobrado em três trabalhos autônomos. São narrativas parciais, que articuladas constituem também um segundo espaço semântico (a exposição propriamente dita). Título de um dos trabalhos expostos, Apego a um Lugar sintetiza a gênese poética das outras peças em exibição. Por esse motivo terminou por designar a totalidade da mostra. Um par de asas de couro abertas e conectadas por uma alça de mala evocam-nos vôos e bagagens, portanto movimentação e deslocamentos. Entretanto não há mais aqui qualquer expectativa de que ocorram. Quais insetos exibidos nas vitrines de uma coleção entomológica, estas asas estão privadas do veloz deslocamento que as trouxe de Portugal ao Brasil, trânsito indicado pela etiqueta de identificação do percurso aéreo da cidade do Porto ao Rio de Janeiro, via Madri. Coladas à parede da sala por fitas adesivas, parecem já ter cumprido seu destino nômade. Doravante estariam condenadas a apegar-se a um lugar específico? (Seria este o lugar da arte? Ou do mercado?).
Não posso deixar de lembrar-me, aqui, da pulsão que impeliu os portugueses mundo afora e que ressoa também, uma vez mais, em trabalhos que assimilam à sua estratégia poética o deslocamento recente para o Brasil (etiqueta). Há porém, agora, uma reversão dessa dinâmica. À idéia de movimentação inerente ao deslocamento foi interrompida por sua chegada a um destino certo (que os apega a um lugar) que convida-nos contemplá-los em sua silenciosa imobilidade, graças ao fim dos fluxos evocados por asas, bagagens, capacetes de motociclistas e até mesmo por uma camisa feita com fitas adesivas.
Perenizados pelo mármore (capacete) e pelo couro (asas), imobilizados por fitas adesivas (asas e Camisa), esses trabalhos extraídos da frenética e incessante movimentação do cotidiano contemporâneo parecem contradizer a efemeridade dos fluxos, ao fixa-los numa enigmática eternidade.
Fernando Cocchiarale, Rio de Janeiro, Setembro de 2007
Señala Fernando Cocchiarale que el trabajo de Isaque Pinheiro florece en los límites de los procedimientos hegemónicos del arte contemporáneo. Lo dice pensando en cómo en su obra coexisten rasgos de noción grecorromana, renacentistas, iluministas y, por supuesto, de una narrativa contemporánea. En efecto, el trabajo de Isaque Pinheiro semeja rebelarse contra la propia historia reciente de la escultura, atendiendo tanto a su pasado como a su presente, asumiendo sus últimos logros sin abandonar la condición formal, el oficio de escultor. Resulta evidente que la evolución escultórica desde el clasicismo de las estatuas hasta hoy ha sido un universo de desencuentros, incluso podríamos hablar de que la escultura asume una repetida traición a sí misma en cada nuevo paso que da. Lo mismo sucede en las piezas de Isaque Pinheiro, siempre distintas, sorpresivas, ingeniosas aún cuando hablan de lo más normal y cotidiano. De ahí que sea tan difícil de etiquetar, tan y tan poco contemporáneo al mismo tiempo. Pensemos en el golpe certero del ready made, o en cómo el arte objetual atacó sus cimientos. ¿Cómo seguir hablando de escultura una vez que el objeto manufacturado se sublima a categoría del arte sin manipular ni modificar nada de su sentido original?; ¿Cómo sobrevivir haciendo escultura en un mundo dominado por el diseño más avanzado?; ¿Cómo sobrevivir al mestizaje de sonidos e imágenes que entendemos como instalación?; ¿Y a la inmaterialidad?; ¿Y al site-specific? La escultura es una historia de ataques iconoclastas a sí misma, una suerte de paradoja, ya que las vanguardias la negaron como medio casi sin querer, llevándola a cierta situación de decadencia, restándole protagonismo y fuerza respecto a otros medios de mayor efectividad mediática. Pero en el trabajo de Isaque Pinheiro todo eso convive con atractiva naturalidad, libre de prejuicios y como si su historia fuese otra. Tradicional en su forma de ‘hacer’, Isaque resuelve conceptualmente desde la tensión propia de la poesía, buscando la incongruencia del objeto, su condición abstracta aún cuando se trata de una propuesta figurativa. Pienso en aquel gesto de Piero Manzoni de firmar mujeres desnudas; el desnudo femenino -intocable género de la historia del arte- se convertía en una acción viva. Pero también pienso en la ingeniosa acción que Isaque Pinheiro realiza con la ayuda de dos amigos y que consiste en crear chapas en las ferias de arte a partir de sus catálogos, un “invento escultórico” que funciona en su carácter de acción capaz de aproximar el arte y la vida a partir de una ironía útil. Y es precisamente el uso de lo útil descontextualizado, ese principio de ready made, lo que articula el trabajo escultórico de Isaque Pinheiro, siempre guiado por el oficio, por el dominio de las formas y el material, y por una frescura a la hora de manejar referentes y asumir la historia conceptual y expandida de la escultura moderna. Años antes, artistas como el citado Manzoni conseguirán que una determinada gente se suba a una peana vacía para ser convertidos en escultura, un gesto que se reduce a una simple extrapolación de la autonomía del arte respecto a la vida formalizada en la figura del pedestal, pero mucho más allá, un gesto que contiene la problemática del presente fugaz, algo que podríamos suponerle a la escultura de Isaque Pinheiro cuando cuelga unas camisas en una pared como si quisiese congelar el objeto cotidiano, la misma vida. Isaque Pinheiro, como muchos artistas contemporáneos que practican la escultura, se dedica a ‘fabricar’ antimonumentos. Por eso muchos trabajos de Isaque Pinheiro tienen un sentido de huella, como cuando Anthony Gormley evoca su presencia desde la ausencia, vaciando su cuerpo para dejarlo como el kouros más primitivo. El propio artista es el inicio, el módulo de su arte, revelando su cuerpo y presentándolo en negativo en un ejercicio de rematerialización del simulacro. Lo mismo hace Isaque Pinheiro respecto a la vida cotidiana. Hablamos de vaciados y procesos, pero también de memoria desubicada, como cuando conforma un rosario a partir de manzanas mordidas, o cuando coloca unas camisas planchadas en una pared a modo de pintura geométrica, deconstruye árboles o pistolas como si fuesen marionetas, camisas con cintas de embalar, coloca objetos en equilibrio procurando lo inestable, infla globos de mármol… materiales para una semántica y poética de los objetos que conforman la singular lógica desdoblada del arte de Isaque Pinheiro, siempre desde lo tenso.
*Extracto de un ensayo que está siendo elaborado por David Barro sobre la obra de Isaque Pinheiro.
David Barro, 2008
“Quem corre por gosto não cansa” é ditado popular em Portugal. O fato de não ser usado no Brasil, no entanto, não impede a apreensão de seu teor metafórico, facilitada pela língua comum e por distinção constitutiva crucial da experiência humana: aquela existente entre tarefas obrigatórias e atividades prazerosas. Felizes são os que atualmente conseguem (ou podem) reuni-las, conciliando trabalho e prazer, sobrevivência e realização profissional. O gosto pode transformar obstáculos em desafios, problemas em soluções transformadoras e tédio rotineiro em trabalho gratificante. Não é, pois, casual a escolha do ditado popular luso feita por Isaque Pinheiro para nomear suas mostras nas galerias Laura Marsiaj, no Rio de Janeiro e Moura Marsiaj, em São Paulo. Trata-se de um título autobiográfico que aponta para o sentido poético geral de seu próprio processo de trabalho – marcado, aliás, por proficiência artesanal admirável. A obra de Isaque ultrapassa não só os repertórios desmaterializados prescritos por parte da crítica e da produção (desde a experiência conceitual), como também supera, graças à sua evidente pulsão narrativa, expectativas estritamente objetuais e formais legadas pelo modernismo. O recuo aos processos de produção predominantemente artesanais (determinado pelo prazer e pela qualificação de Pinheiro), combinado às palavras-título que os nomeiam, funde em seus trabalhos as esferas icônica e semântica. Isaque nos mostra nas duas exposições objetos cotidianos como mochilas (ora produzidas em materiais convencionais da tradição escultórica como o mármore, ora em couro), alvos , dardos e um leque gigantesco (feitos de madeiras crus, em que os nódulos das árvores de onde foram retiradas são deliberadamente visíveis). São objetos que não só parodiam o clássico, como também, simultaneamente, preservam o exercício oficinal cotidiano que tanto apraz ao artista, já que sua complexa feitura é manualmente por ele conduzida. “Quem corre por gosto não cansa” é uma espécie de diário de bordo da trajetória poética do artista. É composto por obras que enunciam, de pontos de vista diversos, o ditado popular que nomeia a exposição. Curiosamente, o trabalho cuja designação é idêntica ao título da mostra é também o único produzido de maneira não artesanal. Trata-se do registro em vídeo do transporte para o Porto de uma escultura (com cerca de três metros de altura) da Imaculada Conceição, santa padroeira de Portugal, feita por Pinheiro na Maia (região metropolitana do Porto) em mármore de Estremoz. Amarrada sobre um caminhão com a velocidade aumentada pela edição, a imagem de Nossa Senhora, (incansável), corre em direção ao lugar em que será definitivamente instalada. A marcha processual do artista é, pois, aludida, aqui, pela marcha de uma de suas obras (ainda que seja provavelmente a obra menos relevante para seu processo autoral, uma vez que resultou de encomenda da Igreja). Mas o percurso de Pinheiro tem por melhor emblema a obra “Lastro”. Consiste de uma mochila em couro que pende do teto, graças ao contrapeso de uma maleta (esculpida em mármore) que do chão mantém todo o arranjo aéreo equilibrado. De seu interior saem cerca de 190 anotações e esboços “scaneados” dos cadernos de ideias produzidos por Isaque desde 1998. Foram selecionados em função do esclarecimento de seu processo, ainda que algumas dessas anotações ainda não tenham resultado em trabalhos efetivos. Integram também a mostra mochilas de mármore com acabamentos em couro, sobre as quais estão respectivamente gravadas em grafite uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, o símbolo dos paraquedistas e dos fuzileiros navais de Portugal. Finalmente são também apresentados “Mão que dá e tira e que torna e que deixa” (alvos feitos de fatias de troncos de árvore não tratados sobre os quais estão dardos feitos com galhos de árvore) e, somente na mostra paulistana, o leque “Pede vento, pé de vento”(feito, como os alvos, somente com pedaços de troncos fatiados) que somam à sequência dinâmica que metaforiza sua corrida incansável e prazerosa em direção ao futuro poético em aberto que o aguarda. A evocação de uma temporalidade difusa (situada entre passado e futuro), evidente na obra de Isaque, é, pois, um índice inequívoco do compromisso de seu trabalho com questões alternativas (posto que preservam a integridade do objeto artesanal, associado à arte do passado) às que caracterizam as tendências hegemônicas da contemporaneidade. Entre história e cotidiano, engenho humano e matéria natural – em suma, entre ver e ler (ou interpretar) − transita o processo criativo e a produção de Isaque Pinheiro, voltada para a atualização da fatura artesanal como um meio possível e atual da produção artística.
Fernando Cocchiarale, 2012
Se a professora de português da c+s não me levou ao engano dizem-se homónimas as palavras que, com sentido diferente, se escrevem e pronunciam do mesmo modo. Com a lição entranhada no toutiço, não levei muito a descortinar com sorrisos o enigma que o Isaque pousou à porta do seu atelier: LEVE escrito num pedaço de pedra mármore encostado à caleira. Peguei corajosamente na pedra. No início era leve, mas depois a coisa começou a pesar, a escorregar, a doer até suar. Em surdina chamei-lhe nomes por ter conseguido, aquilo que nunca a minha mãe conseguiu fazer quando saíamos da mercearia, transformar-me num belo asinino de carga. Uma vez chegado a casa aligeirei o passo para que os vizinhos não me vissem em tais prantos pelas escadas acima. Finalmente pus-me a pensar: na sua simplicidade, este projecto convoca uma série de coisas interessantes! Participação, ludicidade, humor, mudança de quadros referenciais, relações de fronteira entre doméstico-público e performatividade (basta pensar na bizarria de ver pessoas no metro com um pedregulho ao ombro). Além de ter sido um golpe de asa sub-reptício para se livrar de acarretar centenas de pedras para o lixo. Com fito duchampiano e gesto prodigioso só ao alcance das divindades, tal como Jesus nas bodas de Caná transformou água em vinho, o Isaque fez de (nós) calhaus obras de arte. Liguei-lhe para o felicitar.
Lacónico apontamento sobre o "Projecto Leve" de Isaque Pinheiro.
Samuel J. M. Silva, Porto, 24 Janeiro de 2013
(A importância de) Rebater uma árvore Onde se experimenta a ideia de corte como estratégia de indagação e construção, a partir de alguns trabalhos de Isaque Pinheiro.
Desengane-se quem pensa que uma árvore é apenas uma coisa simples e natural, quem pense que uma árvore é apenas isso: uma árvore. Não que não o seja. É. Também. Aliás, talvez seja essa a sua maior transcendência: a de não ter transcendência nenhuma. Uma árvore é uma árvore é uma árvore. Mas desengane-se também quem ache que na concretude das coisas não se hasteia um difícil saber. Não que o engano tenha problema algum (à partida), pois de enganos muitos e belíssimos se faz a história da arte e do pensamento. Mas esse é um assunto menos importante agora, pois está menos do lado dos fazeres e mais do lado da contemplação (também ela um artificioso e oficinal trabalho, tantas vezes relegado apenas para o primado da quietude e da cabeça). Mas é de outros lavores que nos cabe agora ocupar-nos. A questão que apetece colocar é a de como aceder ao saber que ela, a árvore, encerra. Inevitavelmente qualquer gesto de indagação, de acesso a qualquer conhecimento (que com tanta graça se acredita estar no interior de cada coisa) implica, em maior ou menor grau, uma certa violência: a de abrir, separar, matar, cortar para, assim, destruindo, poder (re)construir um entendimento. Um entendimento implica um Corte. Aceder ao saber de uma árvore supõe precisamente roubar-lhe, ou pedir de empréstimo, interromper por instantes a sua condição de árvore: bater-se com ela, embater(-se), abater(-se). É verdade também que todos sabemos, ou podemos facilmente relembrar-nos que, se a árvore ocupou (e ocupa) tantas vezes um lugar totémico , uma função de eixo na cultura dos povos, não será só (e já não seria pouco) porque dela vem o abrigo e o fruto, dela vem o fogo e a flecha, dela vem a seiva e a sombra e ainda um primeiro do relógios do mundo: anunciando o frio com a nudez e o recomeço com a verdura. Gosto de acreditar que o seu lugar de privilégio tem ainda que ver com o facto de ser elaquem imagina os pássaros, como acreditam os, também imaginados, Abokowo de Afonso Cruz*. A árvore é o irmão monumental das gentes, escadaria que convida num só tempo a uma subida aos céus e uma descida à terra. Ela é também o complicado recordatório da natureza de que aquilo mesmo a que chamamos as coisas no mundo nasce do corte. Os gregos antigos sabiam bem que antes de haver mundo o que houve foi um Caos que criou primeiro Gaia (a deusa terra), divindade já de si habitada no interior por um tortuoso e vulcânico Tártaro (o inferno). Mais tarde, de forma mágica , a própria terra gerou Urano (o deus celeste) que, durante uma boa porção de eternidade, copulou incessantemente com Gaia, sua mãe e irmã. E foram unos e juntos durante todo o tempo da cópula, sem espaço nem distância entre eles que deixasse nascer nada que pudesse aflorar. E é deste encontro fecundo que Gaia engravida de tantos titãs, belos e sobre-humanos como forças naturais. Dentre eles Cronos (o deus do Tempo-Espaço), que se vê obrigado, para poder existir, a cortar o sexo de seu pai e desimpedir, assim, a cova materna por onde havia de escapar-se e expandir-se. Num salto de dor e grito, Urano afasta-se da amante terra, deixando aparecer a distância onde pode finalmente haver mundo. Aqui, nessa nova distância, neste lugar em cima da terra e debaixo do céuacontecemos, entre mil outros milagres não sonhados, nós e as árvores: netos irmanados do corte primeiro do que era junto, condenados na doce condena de não ser já imortais, como os deuses, porque, graças a rebeldias muitas, como a de Cronos, nascemos. E ajuda lembrar que os gregos antigos sabiam ainda outras coisas. Sabiam geometria e retórica e que, portanto, rebater é ao mesmo tempo deitar, inverter, abater, cortar mas também repetir, responder, contrariar, devolver numa conversa (e uma conversa boa é muitas vezes longa e pede tempo). E mesmo aqui apetece brincar (que é coisa seríssima) a ser grego e pagão, e imaginar o Isaque (tão a propósito de sobrenome Pinheiro) como um Hefesto possível, de forma humana, que sabiamente despreocupado com as maravilhosas tricas entre filósofos, na sua oficina da polis, sonhando que Platão e Aristóteles um dia ainda irão de mão dada, vai entendendo (com todo o gerúndio que o entendimento humano precisa) que ao Cerne (da árvore, das perguntas) se acede pela mão mais que pela boca. A mão vai desvelando, entre o engenho humano e a ordem natural, tanto o saber que a árvore traz como aquele que o lento e insistente labor de artíficie vai, ao mesmo tempo, descobrindo e inventando. E podemos imaginá-lo a conversar muda e aplicadamente com o tronco de Carvalho ou de Cedro, aprimorando cada corte como resposta que pergunta pela criação dos mundos, ouvindo pela mão acima que há um contrário de Vitrúvio, e que o Homem não é afinal a única Medida de Todas as Coisas; que uma ampulheta só é um relógio porque de uma assentada nos dá o tempo e o seu avesso, porque deixa ver o tempo que passa e aquele que ainda falta passar, e que, então, cada coisa é a coisa em si e também o que a coisa não é (ou a que já não é, ou a que ainda não é). E assim, nesta manualidade de construir-se um saber, vai conhecendo e dando a conhecer que entre a mão e a cabeça há um caminho estreito. Imitando os deuses que manipulam as matérias do mundo, com a alegria do reencontro e através de um ofício de muita aprendizagem descobre na mortandade das coisas o concreto ilusionismo de vislumbrar a morada do que parece eterno. * Afonso Cruz in “Enciclopédia da Estória Universal, Arquivos de Dresner”, 2013, Alfaguara, Editora Objectiva.
Marta Bernardes, Porto 2013
Isaque Pinheiro é o autor de uma obra vasta, ainda que insuficientemente conhecida. Obra múltipla, dada a sua variedade de facetas e de linhas de investigação, em quantidade e em qualidade de invenção, que integra o video, a fotografia e o desenho, é como escultor, porém, que o artista se apresenta, contribuindo com a sua obra para uma noção expandida da escultura mas decerto também para a definição de uma nova paisagem artística em Portugal. Na presente exposição, Isaque Pinheiro apresenta uma série nova de trabalhos cujo conjunto é, no mínimo, surpreendente. Desde os gigantescos dardos feitos de madeira nobre e metais ricos e de ressonância simbólica, como o latão ou a prata, até aos alvos encontrados, à maneira de Max Ernst nos singulares desenhos que a própria natureza fez no interior escondido das árvores, passando por uma gigantesca colagem cujas sucessivas camadas produzem todo um conceito de escultura bidimensional até a um imaginoso video que retoma a temática desta última e a reconstrói num processo quase alucinatório que lhe multiplica os sentidos, todas estas novas obras convergem juntas numa quase instalação que multiplica o espaço que integram de coordenadas conceptuais surpreendentes, e em que as obras por si mesmas são como que partes de um todo, idealmente impossível de separar, mesmo se funcionam também cada uma delas separada das restantes. Artista total, cuja vocação, mais do que a de fazer obras individualizadas é a de penetrar o plano do conceito através da mais cuidadosa elaboração, Isaque Pinheiro transporta-nos, neste caso, para diversas dimensões do contemporâneo: a das referências, a das relações com a natureza e a da reelaboração das imagens, ara citar apenas três das que julgo mais importantes nas dimensões que perpassam, desde há muito tempo, em todo o seu trabalho. Detenhamo-nos, ainda que muito brevemente, em cada uma delas. No plano das referências, encontramos subtilmente a que se faz a Duchamp. Os dardos do nosso artista, inevitavelmente remetem o espectador para essa noção enigmática a que Marcel Duchamp permaneceu ligado toda a vida, de fazer da arte e do seu objecto (portanto do objet d’art) um objecto-dardo (objet-dard). Esta misteriosa associação, que em muito vai para além do mero jogo de palavras, mesmo se este parece ter sido o seu primeiro deflagrador. Na verdade, a ideia (de memória ainda dadaista) de Duchamp de fazer da arte um dardo, quer dizer, um objecto susceptível de ser lançado, e atravessar o espaço, ou de ferir, remete-nos para toda a sua conceptualização da arte como cosa-mentale, como objecto destinado a activar o pensamento e o humor. Os dardos de Isaque, com a sua preciosa elaboração plástica e material (que o artista faz questão de ser ele mesmo a executar em cada uma das suas partes, escolhendo, afeiçoando e polindo a madeira, etc.) existindo como simples formas que atravessam o ar e vão ao encontro das paredes em que se fixam, transportam, creio, essa beleza do objecto que conheceu o movimento, e cujo estatismo permanece como um índice do que é temporário, já que a sua função e o seu desenho intrínseco se destinam a fazer deles objectos voadores. A mudança da escala, tornando-os maiores do que habitualmente os vemos, contribui para adensar uma espécie de enigma que se prende com aquele que, em todo o trabalho deste artista está sempre presente: como mudar a escala dos objectos até que estes se tornem capazes de abrir para um novo campo de significações e de evocações? No que se refere à relação com a natureza, que é outros dos índices persistentes nesta obra, aqui ela transporta-se através do recurso a secções de árvores cujos desenhos, em si mesmos riquíssimos, o artista põe em evidência. Se é verdade que desde sempre ele trabalhou as madeiras, encarregando-se de as encontrar, cortar, seccionar e depois esculpir, neste caso concreto é como se o escultor, fascinado pela própria elaboração desenhística da natureza a respeitasse tal qual mas fazendo-a coisa sua, apropriando-a e reintegrando-a no plano da arte. Não se trata, porém, de nada que se aproxime da land ou da earth art, bem pelo contrário. Aqui, o que se trata é de procurar revelar, como quem revela finalmente um segredo, algo que a natureza cuidadosamente esconde e que se revela primeiramente a quem a conhece intimamente. Desenhos magníficos que as camadas da madeira vão elaborando no seu crescimento lento, quando transportados para o plano da verticalidade evidenciam a sua qualidade de desenho que o trabalho do artista autentica. Neste caso, envolvendo-os com uma espécie de moldura em metal que os arranca à sua primeira pertença natural e os reconverte nessa segunda natureza que nas palavras de Alberto Carneiro, seria a da arte. Assim a escultura é gerada pela transposição calculada de um objecto que é assistido (como no caso dos readymade assistidos do mesmo Duchamp) e essa deslocação constitui-se como o acto designador que preside a toda a criação artística. Também neste caso assistimos ao emergir de um sentido dinâmico, já que é pelo movimento de transposição e pelo encontro, nesse trajecto, de uma imagem, que o objecto em si se torna forma. Uma vez mais a alusão a Duchamp e às suas célebres malas de viagem (valises), quais espécies de museus portáteis, se dá a ver aqui num plano subtil. Que o artista depois lhe chame “Disco rígido”, repõe em circulação toda uma ironia linguística que, de um modo ou de outro, está igualmente presente em todo o seu trabalho. É como se, num acto de apropriação, a obra contivesse num mínimo de espaço referencial toda a ideia (e sobretudo toda a memória) da natureza, e esse fosse o gesto essencial da escultura. Muitas operações de carácter linguístico convergem aqui, que requerem do espectador uma atenção muito particular, já que também elas constantemente redobram o alcance e a significação das peças. O que pareceria a um primeiro olhar uma presença quase natural, imediata, converte-se por um acto de reinscrição (emolduramento, empacotamento, mudança de posição do horizontal para o vertical, etc.) num objecto de novas significações, totalmente secundárias, e que obrigam quem o vê a socorrer-se da memória para o integrar no seu processo cultural. Finalmente, e mesmo se não esgotamos assim todas as dimensões onde se move este trabalho, o problema da reelaboração das imagens. Neste caso, de modo diverso embora, é ainda a memória de Duchamp que é convocada, mesmo se isso é pouco evidente. Uma colagem, que desfigura todo o reconhecimento de uma forma, complexifica o próprio processo típico da montagem de elementos. Num primeiro momento, trata-se de proceder a uma composição complexa, sobre uma imagem primeira da natureza, quase elementar e típica, uma outra imagem, construída, de signos urbanos: automóveis e outros elementos vão-se sobrepondo e criando um violento ruído visual, marcado pela acumulação de imagens e de signos, que se vão assim tornando irreconhecíveis tão intensa é a sua acumulação. Porém, num segundo momento, e numa alusão uma vez mais irónica ao processo construtivo da colagem, o artista vai sobrepondo camadas de fita-cola que, se num primeiro momento parecem servir para conter os elementos da colagem, aos poucos vão tornando impossível uma percepção minimamente consistente do todo. O que vemos, pelo contrário, é uma massa quase informe de camadas sobrepostas, de aspecto ligeiramente absurdo, como se decorresse do acto obsessivo de um jogo sem regras, que vai transformando esta colagem numa quase escultura, dada a espessura que vai ganhando. A memória do “Grande Vidro” duchampeano torna-se inevitável no plano das referências. A maquinação de encobrimento e o resultado visual decorrente das sucessivas camadas que se sobrepõem contribui decisivamente para esse efeito. O todo, na sua progressiva desfiguração, adensa este estranho objecto de uma quase insignificância plástica ou visual. Em certa medida estamos diante de um processo análogo daquele que Balzac descreveu na célebre novela “Le chef d’oeuvre inconnu”, em que o génio obsessivo de um pintor o conduz a desfigurar a sua maior realização artística. O video que a acompanha, porém, bem como algumas fotografias obtidas no decorrer do seu processo de construção, que tal como aquele evidenciam os diversos estágios, permitem-nos perceber de outra maneira o complexo processo que esteve na sua origem. De matriz quase escultórica, este trabalho, que não deixa de evocar longinquamente o colagismo de artistas como Raymond Hains ou Burri, encaminha-se para uma dimensão de memória quase informalista quando, na verdade, opera tão só por saturação de imagens. Alegoria evidente do contemporâneo e dos seus processos, esta obra em particular, que se prolonga nas fotografias e no video que o artista igualmente mostra nesta exposição-instalação, torna evidente o cometimento de Isaque Pinheiro para com os procedimentos mais autênticos do que chamamos a contemporaneidade artística e demonstram de facto a consistência e o alcance de um projecto de criação que hoje é inseparável de uma nova paisagem artística. Uma paisagem que trabalha, cada vez mais, sobre a tentativa de construir imagens sobre a própria ruína das múltiplas imagens da arte.
Bernardo Pinto de Almeida, Porto, Dezembro 2013
Isaque Pinheiro regressa com uma nova instalação de trabalhos seus, desta vez tornando visível o que ele próprio chama, com a ironia habitual que a sua obra reveste, uma arte preconceitual.
Neste termo enigmático configura-se, porém, uma dupla (se não mesmo uma tripla) significação. Por um lado, a que parece mais evidente, que alude directamente ao significado propriamente vernáculo da palavra, ligado à ideia do que chamamos um preconceito. E um preconceito, esclarece-nos qualquer dicionário, é algo que mobiliza uma ideia ou um conceito formados antecipadamente em relação à compreensão do que está em jogo e sem o assentar num fundamento sério ou imparcial. É, portanto, uma opinião em princípio desfavorável que não é baseada em dados objectivos. Uma arte preconceitual poderia ser, então, numa primeira ordem semântica de aproximação, uma arte movida por um sentido reactivo, de negação, colocada numa função ou atitude de preconceito na sua relação com a demais arte que se pratica, o que evidentemente não pode ser o caso, dada a filiação longamente sustentada pela intervenção do artista no contexto contemporâneo e de uma forma plenamente afirmativa.
Procurando mais longe a significação, esta poderia ser — descartada que foi a primeira hipótese, por absurda — a de uma arte assistida, na sua elaboração primeira, por um conceito anterior à forma. O prefixo pre normalmente designa o que antecede. Assim, preconceitual poderia querer significar uma arte que se situa no espaço anterior à forma, ou que parte de um conceito prévio, de que depois a forma seria apenas expressão menor, ou menorizada pela própria força do conceito. Mas, nesse caso não estaríamos longe da consagrada significação crítica e histórica que se atribui normalmente ao uso do termo conceptual (ou conceitual) na arte, tornando desnecessário reforçá-la com o prefixo.
Uma outra significação, então, poderia aqui sugerir-se. A de uma arte que seria, por assim dizer, anterior ao seu próprio conceito, ao pensamento que a pensasse, ou seja, na verdade e em sentido lato, uma arte pré-conceptual, em que a expressão estaria soberanamente presente numa relação de oposição (senão mesmo de apagamento) para com o conceito, encerrada na pura afirmação do expressivo e na negação do conceito que lhe estaria normalmente associado como ponto de partida. Porém, e antes de qualquer outra razão, a própria série de trabalhos que o artista preparou, como sempre com um cuidado e um rigor extremos, tal como a toda a sua obra que tem já longos anos de presença pública, desmentem tal possibilidade. Tudo então, nesta sua instalação segue um fio condutor, correspondendo antes e seriamente a um conceito prévio, que a execução expressivamente esclarece, e reflectindo uma notável capacidade de definir um passo mais, sempre mais longe, no esclarecimento de uma obra que constantemente tem jogado com uma capacidade de tornar ambivalentes, ou mesmo paradoxais, os seus termos e formas. Quer, primeiramente, o sentido da sua leitura mais imediata (na obra de Isaque tudo ocorre sempre no plano de um segundo grau) quer o seu próprio virtuosismo, que constantemente alude subtilmente à estética (ausente) do readymade, mas que ao mesmo tempo desfaz precisamente através de uma elaboradíssima confecção formal digna de um trompe l’oeil.
Poderemos ainda perceber, porém, neste termo aqui proposto pelo artista, algo que estaria num plano de oposição relativamente ao que a crítica de arte contemporânea designa, hoje, na sua expressão mais corrente, como o Post-Conceptual. Como sabemos, este termo designa o campo por excelência do contemporâneo, ao mesmo tempo pós-histórico e pós-crítico, um espaço agora livre portanto de qualquer forma de obediência a esses paradigmas racionalizadores que definiriam os limites da sua expressão, afastando-se assim de toda a referência ao Modernismo e à sua noção estrita de História.
De facto, num acto de sentido quase disciplinador, mesmo relativamente aos seus mais recentes trabalhos, Isaque Pinheiro recorre, nas peças desta instalação, a elementos nobres da escultura clássica, o mármore e o metal. Ecrãs de computador delicadamente gravados deixam entrever, nos veios próprios da pedra laminada, imagens naturais que não podem deixar de referenciar os mapas virtuais dos motores de busca informáticos. Por outro lado, um novelo branco, cuidadosamente enrolado, quando visto na proximidade revela a sua elaboração meticulosamente cavada na pedra, à maneira do que faria qualquer escultor clássico. O preconceitual poderia pois ser, para encontrar finalmente uma possível definição que parece mais apropriada ao trabalho que agora vemos, a procura de um momento de suspensão relativamente ao que foi o momento pós-conceptual, quer dizer, algo que se deixaria ainda prender na vontade de esclarecer um diálogo com o que foi o próprio da chamada arte conceptual. Isto é, dessa arte do conceito que afinal esta procura como um referente ainda próximo.
Como se Isaque quisesse na verdade dialogar ainda uma vez mais com esse projecto histórico ainda próximo de nós por poucas décadas, e que consistiu em transportar a arte para o puro plano do conceito, desfazendo as relações de objecto, e que consagrou definitivamente a forma do readymade como norma sua antecessora em oposição a uma arte do fazer e do ver. E deste modo o nosso artista viesse afirmar ainda a possibilidade de inverter aquele processo, questionando-o, ao fazer simples formas de imagens readymade (em si mesmas já vistas: sejam o novelo ou o ecrã), mas reconstruídas agora com os mais nobres materiais mas mantendo-se na órbita do actual ao perderem qualquer vínculo a uma função representativa. Assim, tudo nesta instalação — porque é disso, creio, que se trata — abre para pistas falsas.
A disposição das peças pelas salas, a referência aos fios e novelos, em metal e em mármore, os ecrãs mudos e para sempre estáticos nessa mudez da pedra, as mesas de metal, os objectos friamente esculpidos pelo seu virtuosismo, mas que não guardam qualquer significação… enfim, o próprio título.
Deste modo Isaque se e nos propõe dar um passo mais, com ele, nessa estranha meditação sobre ruínas que a sua obra vem conduzindo no terreno claro da contemporaneidade, mas sem deixar de inscrever um profícuo diálogo com a tradição que o precedeu. Porque ele sabe que no acto de criação tudo é enigma.
Bernardo Pinto de Almeida, Abril 2015
Ao considerar o contexto das artes visuais nacionais das últimas décadas deparamo-nos com um cenário que não deixa de ser consideravelmente desfavorável à escultura, num sentido de ancoragem numa tradição disciplinar e não nas suas versões expandidas, nomeadamente naquilo a que hoje vagamente se apelida de instalação.
É, também, neste território que persistem muitos dos equívocos que perpassam na arte contemporânea, num arrastamento de premissas pseudomodernas que resultam em infindáveis monólitos (grande parte deles a “embelezar” rotundas indiscriminadamente semeadas por autarcas voluntariosos). A renovação da linguagem escultórica tem passado por metodologias em que primam ímpetos desmaterializantes, por um lado, e de interação com o espaço de exposição, num plano de integração/questionamento da arquitetura preexistente.
Isaque Pinheiro é um escultor. Todo o seu pensamento plástico traduz-se através do manuseamento, modelagem, talhe e assemblagem de materiais. O seu corpo é um corpo que se mede com a altura e o peso dos materiais, a sua intuição e inspiração criativa moldam-se no peso de antecessores e contemporâneos que definem os parâmetros de uma disciplina que persiste, nos melhores casos, como inevitabilidade desejada. Não deixa de ser curioso que no jargão da história da arte se menciona vezes sem fim o putativo fim da pintura, quando a escultura talvez tenha sido o campo que tenha vivido a mais tensiva das reformulações formais e conceptuais na segunda metade do século vinte. No famoso ensaio Art and Objecthood de Michael Fried, seminal nas clivagens estruturantes do pensamento artístico dos anos sessenta do século passado, era sobretudo na escultura (Caro vs. os minimalistas) que se encontravam argumentos (“presentness” vs. teatralidade e literalismo).
Contudo, não deixa de ser curioso que um dos epicentros contemporâneos de problematização do estatuto da imagem e da arte em geral seja precisamente a ideia de monumento, hoje em dia torturada por infindáveis perscrutações de artistas jovens que frequentemente pensam que a simples junção de uma imagem de arquivo de uma qualquer manifestação (escultórica ou arquitetónica) moderna com um qualquer dispositivo de exposição (mesa/jogo de slides/pintura por cima, etc., etc.) lhe confere um ar de investigação documental tão favorável ao apetite bienalista. Considere-se, por oposição, o incisivo e hipercrítico debate que um artista como Thomas Schütte mantém com a disciplina, com o contexto de receção da ideia de monumento, com a história contemporânea e, basicamente, com os seus fantasmas – que são os nossos -, para se perceber do que falamos: da espuma do tempo ou de arte.
Escultor, portanto. Isaque Pinheiro propõe para a Travessa da Ermida, espaço dessacralizado e atualmente a funcionar como centro de exposições, uma peça que se vai, estou relativamente seguro desta asserção, tornar um ponto de reflexão incontornável na plêiade de imagens da escultura portuguesa contemporânea. Assim, sem mais. Porque há momentos em que nos confrontamos com imagens que sabemos não mais poder elidir do nosso mais profundo ser. Por agradáveis, inquietantes, repugnantes ou empáticas que sejam. Ficam.
“Arte de arremesso”/ Diálogo com as paredes, título de obra que agora se discute, é uma composição inverosímil. Um fragmento arquitectónico de pendor classicista, inacabado, jaz no chão do espaço deste antigo local de culto envolto naquilo que numa primeira impressão se assemelha a um dispositivo de borracha para lançamento bélico e ofensivo dirigido a um oponente distante. A imagem óbvia é a de uma espécie de catapulta. Pressente-se a ductilidade do elemento negro que envolve aquele fragmento de coluna rosado. Pressente-se o peso do material e calcula-se a enorme energia que esse elemento retráctil teria de suportar para o arremesso.
Porém, numa observação cuidada (ou no toque), apercebemo-nos que se trata de um elemento de ferro, uma impossibilidade vertida em imagem provável. O espaço, confrontado com esta presença ameaçadora, torna-se opressivo, claustrofóbico. Cruzam-se vários tempos numa atemporalidade recetiva: a antiguidade clássica da origem deste tipo de armas e da gramática arquitetónica do fragmento de mármore, o romantismo associável estética do fragmento clássico, à ruína, a contemporaneidade no modo com um espaço se transmuta a partir da ocupação artística e, fundamentalmente, o presente imediato na reverberação de um contínuo som de uma picareta num qualquer estaleiro etéreo.
O fazer e a potencialidade do ser. Escultura performativa naquilo que convoca no seu estado tensivo. Porque nela espaço e tempo colidem num filamento do possível construído; não na sequela surreal, antes na irrealização do previsível. O absurdo, aqui, não provém de um acaso objetivo, antes de um calculado e estruturado plano de colisão entre aquilo que percetivamente retiramos do olhar materiais que pensamos estabilizados, para rapidamente perceber que na inversão das expectativas se questiona a nossa ineludível necessidade de interpretar mediante o conforto do reconhecível.
Ainda que tenha referido Isaque Pinheiro como um escultor, esta sua escultura é, talvez, um dos mais complexos dispositivos que gizou, exatamente porque responde a uma encomenda muito específica para um espaço muito particular. Nesse sentido, é um afloramento da Gesamtkunstwerk wagneriana, momento de intrínseca união de diversas artes e sentidos. Implicar diversas temporalidades, como se referiu, perceções mais ou menos cultas, profundas ou imediatas e despreocupadas (imagino crianças delirantes a usufruir da peça, e eruditos a rememorarem conhecimentos adquiridos…), tal é a energia que se pede a uma obra que permaneça para além da sua circunstância.
Quando o artista conceptual Douglas Huebler se propunha, em 1969, não acrescentar mais objetos ao mundo, numa provocativa e premonitória relação com a criação extensiva, irresponsável e medíocre de “obras de arte” que ocupam demasiado espaço nos confins de casas a serem despejadas, reservas de museus incompatíveis com tanto metro cúbico de “indesejados”, perguntemo-nos, sempre e com o maior discernimento possível: vale a pena? Neste caso, neste momento, declaro: sim. Obrigado, Isaque.
Miguel von Hafe Pérez, Janeiro de 2017
O peão não é uma peça insignificante! Contrariando o que se diz para aí à boca pequena, que o peão é uma peça menor e que até pode ser facilmente sacrificado, a prática xadrezística demostra-nos o oposto, provando, de forma categórica, que este pequeno soldado é uma peça muito especial, e uma das mais relevantes do jogo dos Reis.
As razões são várias. O peão é a única peça de xadrez que pode ser promovida, transformando-se numa outra peça — normalmente a Dama — assim que alcança a oitava casa. O peão é a única peça de xadrez que tem dois movimentos: um para avançar e outro para capturar as peças adversárias. O peão é a única peça de xadrez que pode tomar os outros peões na passagem, ou “en passant”, como se diz nos meios escaquísticos, um movimento especial de captura que a maioria dos “jogadores de domingo” pura e simplesmente desconhece.
Para além do mais, o peão só anda para a frente, um aspeto que pode ser visto como negativo pelas mentes mais invejosas, mas que na realidade demonstra que o peão só evolui, nunca regride. O peão goza da possibilidade de avançar duas casas no primeiro lance, um privilégio que também pode ser visto como uma discriminação positiva, mas que o peão aceita de bom grado. E, finalmente, como se ainda não bastasse, a suposta fraqueza dos peões, que aparentemente os diminui, acaba na prática por lhes conferir uma enorme força, porquanto faz com que as outras peças os temam e evitem colocar-se em casas que são controladas por eles. Basta observar uma qualquer partida de xadrez para vermos como isso invariavelmente acontece.
Em suma, o peão goza de várias prerrogativas, representando, em termos simbólicos, o povo, e por isso não é nada estranho constatarmos que a maioria dos planos estratégicos do xadrez sejam gizados a partir das estruturas de peões que ocorrem no tabuleiro. Razão tinha François-André Danican Philidor (1726-1795), renomado músico e extraordinário jogador de xadrez (muito à frente do seu tempo), quando em 1792, numa altura em que a França vivia momentos revolucionários, compreendeu o paralelismo entre o xadrez e a vida, escrevendo no prefácio do seu livro Le jeu des échecs uma frase que ficou para a história: “os peões são a alma do xadrez”.
Vem tudo isto a propósito da mais recente exposição do Isaque Pinheiro, que uma vez mais incorpora uma série de peões de xadrez. A pergunta que nos ocorre de imediato é a seguinte: porquê peões de xadrez? A resposta cabe, evidentemente, a cada um de nós dar. No meu caso, avanço aqui três propostas de leitura plausíveis, entre muitas outras possíveis.
Comecemos pela chave de leitura mais óbvia, aproveitado a sugestão de Philidor: os peões do Isaque, “à sua imagem e semelhança”, representam o artista, assim como todos nós, e remetem para o mal-estar cultural que a esmagadora maioria da população mundial atualmente atravessa.
Os peões do Isaque lembram-nos que vivemos uma profunda revolução civilizacional, que culminará não se sabe em quê, na qual o povo, contrariando as leis mais elementares do xadrez, está a ser completamente esquecido, ou mesmo espezinhado pelas classes dirigentes, que seguem as instruções obscuras de alguns mandarins. Os peões do Isaque recordam-nos que dentro deste povo há uns que sofrem mais do que os outros, visto que, por razões relacionadas com guerras económicas mascaradas de religiosas, são muitas vezes obrigados a deixar o seu país de origem e fazerem-se à estrada, ou mesmo ao mar, na procura (delirante?) de uma vida melhor. E os peões do Isaque mostram-nos que essa crise, longe de estar terminada, está a conduzir-nos para um mundo cada vez mais desigual, no qual impera uma conhecida máxima: “salve-se quem puder”. Donde a centralidade dos peões, bem como dalguns apontamentos da exposição que remetem para a deriva, ou possível naufrágio, exemplarmente materializado num pedaço de “jangada” branco, marmóreo, “clássico”, no qual se ergue um mastro de (des)esperança.
Diria que esta primeira leitura se situa no campo sociológico, mas também nos campos político e económico, trazendo-nos à memória o inesquecível quadro de Géricault, A Jangada da Medusa (1818-19), com os seus corpos amontoados, que depositam as suas últimas esperanças num sobrevivente acobreado, que acena a um barco distante que surge no horizonte. Será que o aceno artístico do Isaque irá ser visto pelos tripulantes desse barco que desponta? Será que poderá haver alguma salvação possível para os (nossos) corpos cansados desta jangada? Aparentemente, a resposta é afirmativa, a avaliar pela posição encimada, altiva, segura, com que os peões nos olham do alto da prateleira em que foram colocados. Ou então aqueles peões foram os únicos sobreviventes da jangada alva que conseguiram resistir à intempérie, e olham-nos, aliviados, num cenário de crise permanente. É uma outra perspetiva possível, ainda que bastante mais catastrófica.
A segunda chave de leitura leva-nos para o campo da psicologia.
Quando perguntei ao Isaque a razão de serem 22 peões, onze brancos e onze negros, fi-lo no pressuposto de haver algum motivo escondido por detrás daquele número. Estaria relacionado com algum jogo? Teria a ver com futebol, uma vez que é um jogo de onze contra onze? A resposta surpreendeu-me: “foram os peões que consegui produzir, que sobreviveram às várias tentativas que fiz.” Esta resposta fez-me imediatamente pensar numa espécie de pai magnânimo, que vai produzindo filhos “à sua imagem e semelhança”, sem qualquer objetivo em vista, disposto a aceitá-los todos de forma incondicional, nomeadamente aqueles que “nasceram” com defeito. Sim, porque muitos dos peões sobreviventes têm várias deformações, ou perderam mesmo a cabeça, no sentido literal do termo.
Estes peões diferenciados, que brotaram do mesmo molde, mas que por circunstâncias várias sofreram pequenas alterações, adquirindo deste modo uma identidade muito própria, fazem-nos lembrar a velha querela inato/adquirido, que tem acompanhado a história da psicologia e outras ciências antropológicas, a meu ver de um modo absolutamente disparatado. Como está fácil de compreender a partir dos peões do Isaque, aquilo que faz a diferença dos peões é a sua história de vida. “Geneticamente” os peões são todos iguais; vieram todos da mesma forma. Foram as vicissitudes da sua existência, os “acasos” que sofreram, e muito em particular aqueles que ocorreram nos primeiros momentos de vida, enquanto estavam ainda “quentes”, “moldáveis”, que lhes deram a sua identidade atual.
Da mesma forma, sabemos bem através da observação de gémeos verdadeiros, geneticamente idênticos, autênticos clones um do outro, que são as suas histórias de vida, as experiências mais marcantes que cada um deles viveu, que faz a diferença na sua identidade, ainda que muitos “cientistas”, nomeadamente aqueles ideologicamente mais ligados às teses inatistas, tentem desesperadamente provar o contrário. Daí que, por exemplo, um dos gémeos possa ser heterossexual e o outro homossexual; ou que, novo exemplo, um dos gémeos possa ser destro e o outro canhoto. Ambos nasceram da mesma célula, do mesmo material genético, que se dividiu em dois para originar dois seres inicialmente idênticos, mas foi a sua história única e irrepetível que lhes deu a sua identidade. Não foram os seus genes que os determinaram, foi sim a forma como esses genes interagiram com o meio circundante.
Indiretamente, é isto que os peões do Isaque nos lembram. Para algumas daquelas peças, não foi a sua forma inicial que as determinou, mas sim as suas primeiras “experiências de vida”. E mesmo essas, que lhes deram a identidade que detêm atualmente, não são decisivas para o resto da vida. O mais relevante é a interação, a forma como se tira partido dessa identidade prematuramente forjada. Porque ao longo do tempo irão surgir inúmeras possibilidades, bem como outras possíveis alterações identitárias, que marcarão a vida de cada peão, ou se quisermos, de cada um de nós. E a interação continua…, pelo menos até morrermos. Viva a complexidade.
E finalmente chegamos a terceira e última proposta de leitura: a chave duchampiana. Como é bem sabido, Marcel Duchamp foi um excelente jogador de xadrez, dedicando parte significativa do seu tempo à prática desta modalidade. Tal entusiasmo pelo jogo, bem documentado em inúmeras imagens, permitiu-lhe chegar ao nível de mestre nacional de xadrez, dando-lhe deste modo a possibilidade de jogar ao mais alto nível em termos internacionais, defrontando alguns dos jogadores mais fortes da época, bem como a fazer parte da equipa francesa em várias olimpíadas, equipa essa que na altura era liderada por Alexander Alekhine, um dos mais famosos campeões do mundo de xadrez de todos os tempos. (Dagoberto Markl dedicou um livro à sua misteriosa morte no Estoril).
Também como é sabido, esta sua paixão pelo jogo estendeu-se à sua atividade artística, figurando ou servindo de inspiração para inúmeros quadros, artefactos ou mesmo objetos “ready-made”. Algumas dessas ligações artísticas ao xadrez são evidentes: é o caso, por exemplo, dos quadros La Partie d’échecs (1910), Portrait de joueurs d’échecs (1911) ou Le Roi et la Reine entourés du nus vites (1912). Outras ligações estão relacionadas com artefactos que foram construídos para a pratica deste jogo, como é caso das peças de xadrez que desenhou ou dos “carimbos” de peças que criou propositadamente para poder jogar xadrez por correspondência. E depois temos as peças ready-made que criou a partir deste jogo, como por exemplo Pocket Chess Set with Rubber Glove (1944), assim como muitas outras peças artísticas que estão relacionados com o xadrez, mas de uma forma velada, passível de ser entendida apenas pelos experts da modalidade. É o caso de La Fourchette du Cavalier (1943), que remete para uma jogada de xadrez, ou do seu suporte de garrafas Hérisson (1914), que quando traduzido para inglês passa a ser Hedgehog, nome de uma bem conhecida estrutura de peões de xadrez.
De acordo com Bradley Bailey, num texto publicado em 2009 intitulado “Passionate Pastimes Duchamp, Chess and the Large Glass”, a emblemática obra de Duchamp La mariée mise à nu par ses célibataires, même (1915-1923), também conhecida por Le Grand Verre (O Grande Vidro, na tradução portuguesa), enquadrar-se-ia neste tipo de obras com uma ligação interna ao xadrez, porquanto Duchamp, para a realização desta peça, envolveu-se num estudo exaustivo da história dos peões, que acabou por se materializar na obra sob a forma dos nove moldes. Na realidade, esta possível ligação do Grande Vidro ao xadrez já tinha sido sugerida previamente por outros autores (Michel Leiris e Calvin Tomkins). Porém, Bailey leva ainda mais longe a sua análise, argumentando que os nove moldes representam os oito peões do xadrez e o próprio Duchamp, funcionando deste modo como um autorretrato disfarçado. Continuando com as palavras de Bailey:
A minha análise centra-se principalmente num elemento específico do Grande Vidro que é amplamente considerado como um autorretrato disfarçado de Duchamp: os nove moldes (página 69). Vários estudiosos observaram que as formas dessas figuras parecem ter derivado de peças de xadrez. No entanto, apenas dois comentaram brevemente que o relacionamento se pode estender à iconologia do xadrez. A relação triádica entre Duchamp, o Grande Vidro e o xadrez é mantida através de várias fotografias em que esses três elementos são integrados numa única imagem, sugerindo uma relação mais enfática entre os moldes e o xadrez do que foi até agora reconhecido. De facto, que a secção do Grande Vidro, que se pensa representar Duchamp, derive provavelmente da iconografia do xadrez reforça a discussão maior de que a sua associação com o xadrez seja uma faceta central e subvalorizada da identidade do artista.
(pág. 49, tradução minha)

O que nos traz de volta aos peões do Isaque. Será que o artista quis trazer Duchamp à colação, usando os peões de xadrez para estabelecer um diálogo com o velho mestre? Ou será que o Isaque, à semelhança de Duchamp (a acreditar na leitura de Bailey), está a usar uma vez mais os peões como forma de se autorretratar? O título desta peça induz-nos neste sentido, ainda que as outras chaves de leitura aqui propostas também sejam, como vimos, perfeitamente possíveis.
A primeira chave enfatiza a situação que se vive atualmente em termos mundiais, na qual se escava uma vala cada vez mais profunda entre os poucos que têm muito e os muitos que ficam com pouco. Nesta leitura de pendor sociológico, os peões representam a maioria, aqueles que constituem os 99% da população, lembrando-nos que as outras peças deste tabuleiro, apesar de por vezes parecerem que estão a jogar a nosso favor, pertencem na realidade a outras castas, executando na maioria das vezes planos espúrios que não nos favorecem de todo.
Na leitura psicológica relembramos que é pela diferença que se traça a identidade, e que essa diferença se faz não só pela matéria originária que nos constitui, mas sobretudo pelo percurso de vida, através da experiência, da interação, do modo como “enfrentamos” a realidade. Nesta proposta interpretativa, o peão continua a representar-nos, mostrando que a ontogénese se sobrepõe à filogénese, dando-nos alento para continuarmos a nossa luta. O que não significa que a forma, que serve de base para aquilo que une todos os peões, deva ser desvalorizada. É que esta leitura tem um perigo: a questão da identidade. Se nos deixarmos levar pela variedade fenotípica e nos esquecermos da base genotípica, corremos sérios riscos de nos deslumbrarmos e pensar que seremos o próximo peão promovido, o sucessor do Cristiano Ronaldo. Esta leitura identitária é perigosa porque não vai à base do problema, que assenta numa luta de castas. Se os peões começarem todos a guerrear entre si, procurando tirar partido da sua diferença, a pensar que a salvação de todos passa pela promoção de uns poucos “escolhidos”, acabarão por fazer o jogo do inimigo, mantendo o status quo. E o status quo, como sabemos, não é benéfico para o peão.
E finalmente temos a última leitura, mais artística, mais técnica, mais hermética, que nos coloca em diálogo com Duchamp, que foi, como sabemos, o mestre que revolucionou a forma de olharmos a arte, o que nos permite estar hoje a refletir sobre peões de xadrez enquanto objetos de arte. É uma chave menos óbvia, na medida em que remete para a faceta mais xadrezística do pai dos ready-made, mas ainda assim possível porque Duchamp e Isaque são artistas, e os artistas gostam de jogar uns com os outros.
Três leituras, portanto: sociológica, psicológica, artística.
Naturalmente que estas três propostas não esgotam de todo as inúmeras leituras possíveis sobre os peões do Isaque. Estão a faltar aqui as leituras fenomenológicas, pós- modernas, hermenêuticas, desconstrutivistas e quejandos, que têm pautado as invertebradas interpretações ecléticas, tão contemporâneas, que pululam por aí, “à imagem e semelhança” dos seus autores. Deixemo-las para outros, mais cultos, visionários e capazes. Fiquemo-nos antes por aquilo que diz mais respeito às nossas áreas de interesse, relembrando, contudo, que o mais importante são os peões do Isaque, porque são eles que estão no centro desta exposição, são eles que nos olham do alto do plinto.
Talvez possamos arriscar dizer, em jeito de conclusão, que se Philidor voltasse ao mundo e visitasse a exposição do Isaque, eventualmente não ficaria surpreendido com a centralidade dos peões, embora pudesse querer reescrever a sua célebre frase, passando a ser algo do género: “Os peões continuam a ser a alma do xadrez, mas são precisos artistas como o Isaque para nos relembrar.”
J’adoube!
Bibliografia citada:
Bailey, Bradley. 2009. “Passionate Pasttimes: Duchamp, Chess, and the Large Glass.” In Marcel Duchamp: the Art of Chess, edited by Francis Naumann and Bradley Bailey. New York: Readymade.
Diniz Cayolla Ribeiro (I2ADS-FBAUP), Janeiro de 2018
El día en que una estatua está terminada, su vida, en cierto sentido, empieza”
Marguerite Yourcenar, El tiempo, gran escultor
Entiendo que esta última exposición de Isaque Pinheiro es algo así como una suma de infinitas restas. Un juego donde se nos esconde el tablero. Como el juego de la vida. Como el juego del arte. Porque como señaló Mallarmé, todo pensamiento emite una jugada de dados. Y en esta exposición se nos abren puertas a reflexiones bien distintas, ya sea dentro del contexto de la propia historia del arte, o del presente continuo de nuestra historia social, con sus progresos y sus fracasos, con sus motines y sus fronteras. Porque esta muestra titulada Gloria es, antes de nada, un paisaje, una realidad temporal, de carácter discontinuo. Algo así como un tiempo curvado, capaz de desviar cada detalle en resto, como en un naufragio donde los objetos nos salen al encuentro. Diría que más que ocupar el espacio, aquí se deshoja, como una carta. Pienso en La carta robada de Lacan, donde se deja al descubierto lo que se desea esconder, porque lo que está escondido no es otra cosa que lo que falta en su lugar. Y Gloria es, en definitiva, una escritura jeroglífica donde en lugar de respuestas encontramos puntos suspensivos. Porque siempre estamos a la merced del otro, en este caso del artista emancipado que propone, un dislocamiento, un desvío del sentido.
Por supuesto, todo esto es una ficción, que debemos desvelar o interpretar. Para ello, como jugadores posibles, no nos queda otra que escapar del mundo. Porque el juego aquí podría prolongarse hasta el infinito. Sin certezas. En alguna ocasión, Giacometti aseveró que era imposible dejar algo acabado porque era imposible reproducir lo que uno ve. Como señala Didi-Huberman en su libro Le Cube et le visage, en la obra de Giacometti opera más un ejercicio de desfiguración que de figuración misma. Su serie de Cabezas del padre, de finales de los años veinte, proyectan una figura devastada por el tiempo. Como en el caso de Isaque Pinheiro se produce una suerte de desdibujamiento del paisaje en tanto que todo obedece a un deliberado inacabamiento. Como espectadores hemos de reconstruir esa ausencia, que no es producto de una deriva abstracta sino de esa desfiguración antes citada. Los datos están enterrados al tiempo que sobreviven latentes. Didi-Huberman lo llama “espesor” antropológico. Aquí lo encontramos. Pero si algo seduce de cómo despliega Isaque Pinheiro sus fichas u obras por el tablero es por cómo traduce una suerte de intimidad, que acerca al hacedor y al jugador.
Resulta evidente que en Isaque Pinheiro es más importante la búsqueda que el encuentro y que en su obra el misterio se espesa, una vez que la realidad no se puede captar en su conjunto. Giacometti decía que si miraba de frente se olvidaba del perfil y si miraba el perfil olvidaba la cara. Ese sentido de lo inencontrable, ese paisaje donde todo se torna discontinuo, se proyecta en esta última exposición de Isaque Pinheiro, porque en esta muestra se impone la poética del paseo, una suerte de indagación sin un final previsible. Se trata de caminar y descifrar qué nos quiere contar el artista en su ficción arqueológica. Isaque Pinheiro convoca el enigma y todo asume una condición especular. Se trata de dinamizar el espacio, de dramatizar la tensión. Para el espectador, se trata de una toma de decisiones. Como en Beckett, la cuestión no es el decir, sino el mostrar.
Isaque Pinheiro trabaja y pone énfasis en el espacio como algo vivido más que algo físico. Por supuesto, pienso en Duchamp y en esos movimientos o jugadas de ajedrez que aquí se proyectan en 22 figuras de peones. Por eso hace hincapié en nuestra capacidad de encontrar, en que una cosa nos lleve a la otra, como en una suerte de hipertexto. El espacio vivido y transitado trasciende a la mensurabilidad. Como en el pensamiento japonés, procura una comprensión relacional del concepto de espacio y de tiempo. Se trata de espaciar y temporalizar. Lo explica bien el arquitecto Juhani Pallasmaa, que señala que la pátina del desgaste añade la enriquecedora experiencia del tiempo a los materiales.
Todo ello nos lleva al relato de Yourcenar con el que abrimos el texto. Yourcenar señala cómo la forma y el gesto que les impone a las estatuas el gesto del escultor no es para estas sino un breve episodio entre su incalculable duración de roca en el seno de la montaña y luego su larga existencia de piedra yacente en el fondo de las aguas. De ahí esa idea de que cuando una estatua se termina su vida comienza. “Se ha salvado la primera etapa que, mediante los cuidados del escultor, la ha llevado desde el bloque hasta la forma humana, una segunda etapa, en el transcurso de los siglos, a través de alternativas de adoración, de admiración, de amor, de desprecio o de indiferencia, por grados sucesivos de erosión y desgaste, la irá devolviendo poco a poco al estado de mineral informe al que la había sustraído su escultor”.
La escultura y su deriva es una buena metáfora de la vida. La escultura ha sido utilizada en muchos casos para trasmitir una ideología, aprovechando su resistencia a la intemperie. Para la representación de los héroes, de caudillos, o en definitiva, de la idea de poder, no hay nada mejor que la estatua. De ahí que el momento final para simbolizar el derrocamiento de una dictadura sea el derribo de una estatua. Pero lo cierto es que la escultura es la disciplina que, tal vez, tiene una contemporaneidad más débil. Esta última aseveración tiene sentido si atendemos a cómo ha disminuido el número de lo que podemos considerar “escultores”, en consonancia con la campaña de descrédito que desde las vanguardias viene sufriendo la escultura. La desaparición del objeto la tornó en algo residual, siempre a expensas de la aparición de un nuevo orden. Lo advertimos si echamos la vista atrás y vemos como salvo Medardo Rosso o Auguste Rodin, los grandes escultores del siglo XIX provenían de la pintura. Posteriormente, tampoco habrá muchos escultores puros, exceptuando casos brillantes como Brancusi o más recientemente Richard Serra. Isaque Pinheiro recoge ese legado, y lo hace con complicidad, con humor, con ironía.
También con un lado íntimo. Y eso tiene mucho que ver con cómo parte del dibujo. Se advierte sobre todo en esta última exposición, donde el dibujo, escondido, permite un doble juego expositivo, ya que si miramos por debajo de las lámparas, al agacharnos, descubriremos toda una serie de dibujos que proceden de sus cuadernos de ideas y que aquí conforman collage donde el artista dibuja por encima y lo muestra con el misterio censurado de lo pornográfico, acercándose todavía más al espectador y deconstruyendo las distancias, como si más que una experiencia artística fuese un encuentro entre amigos en una mesa de un café, con dibujos sin sentido y desvelamiento de situaciones íntimas.
En este sentido, Derrida define la deconstrucción como una experiencia aporética de lo imposible. Algo así como una operación que no surge desde el exterior de la obra, sino que siempre está obrando en la obra. Se trata de abrir la lectura y no de cerrarla, de que cada inmersión en el espacio se destile como un acontecimiento inédito. De ahí la importancia del desplazamiento físico, del hecho de movernos, de agacharnos, para aprehender lo secreto, lo oculto. El resto, la ruina, el boceto, el dibujo, la memoria, emergen así en este despliegue arqueológico que conforma una narración compuesta con fragmentos de otras narraciones vinculadas al artista. Porque como señala Derrida, en un cierto sentido, tanto la huella, como la ruina o la ceniza son inseparables del campo semántico del recuerdo. Así, para el filósofo, heredar es hacer memoria subrayando la performatividad que esta expresión lleva implícita, porque la memoria ha de hacerse. Las de Isaque Pinheiro son ruinas que están ahí para que el espectador, como un arqueológo, las interrogue.
Esa idea del fragmento arquitectónico ya se da en “Arte de arremesso” / Diálogo com as paredes expuesto en Travessa da Ermida, donde una suerte de catapulta reafirma el potencial monumental del trabajo de Isaque Pinheiro. El peso del material y la manera de expandir su obra por el espacio de forma desafiante e inquietante, proyectando así una sensación agónica, remite a otros trabajos como sus MAE (2004), Sapatos de Pedra e um Horizonte Aberto (2006), Em cima da Terra e debaixo do Céu (2008), A Medida de Todas as Coisas (2010), Ampulheta (2013) o À minha imagem e semelhança (2014), donde ya introduce las figuras de los peones, que como señala Diniz Cayolla Ribeiro en un texto específico sobre ellos, están lejos de ser una pieza insignificante en el ajedrez. Para empezar, aquí puede representar simbólicamente el pueblo y en extensión el malestar cultural. Para Diniz Cayolla Ribeiro recuerdan cómo las personas, como los peones, sufren más unas que otras y traza lecturas sociológicas, políticas, psicológicas y duchampianas en última estancia como ready-made, aquí pervertido en este juego de escalas.
Una vez más, las resonancias simbólicas, las distorsiones de escala, la monumentalidad, las referencias duchampianas, la proyección enigmática, el acto de creación como dislocación de la naturaleza, la resignificación objetual, el gusto por el collage, la historia como ruina y fragmento se conjugan en su trabajo. En esta exposición, insiste también en el carácter performativo de su escultura y su manera de trabajar site-specific, así como el toque de humor irreverente, que va mucho más lejos de la habitual ironía del arte contemporáneo. Por todo ello, como bien señala Miguel von Hafe Pérez, en estos últimos trabajos resulta especialmente interesante el cruzamiento de tiempos, desde la gramática arquitectónica del fragmento de mármol propio de la antigüedad clásica, a la ruina propia del romanticismo, pasando por la ocupación artística propia de lo contemporáneo. El tiempo es aquí, otra vez, un gran escultor.
Porque efectivamente, del romanticismo y de sus derivas contemporáneas toma ese amor por la ruina que describe Yourcenar, aunque realmente recoge mucho más. Por un lado, en su despliegue espacial se acerca al conocido laberinto piranesiano que se inserta indudablemente en la escenografía romántica. Por otro, por cierta atracción por lo abismal, invitando al espectador a viajar y experimentar algo, en cierto modo, inconmensurable. Porque se trata de un paisaje como desposesión, una vez que la antigua grandeza retorna aquí como una forma de angustia, como si asistiésemos a una ceremonia de la desposesión. Así, la ruina es símbolo de la fugacidad, es huella, una suerte de sumisión a la cadena de mortalidad. Como en Piranesi, se trata de una arqueología trágica. Una suerte de mar de hielo como el pintado por Friedrich. Aunque si pensamos en pintura es inevitable pensar en Géricault y La Balsa de la Medusa -seguramente el primer cuadro de política explícita de la historia del arte-, o el naufragio que pintará Turner años más tarde. También en San Juan en Patmos, de Poussin. Isaque Pinheiro reconoce en las antiguas piedras la hermosura, que se esconde en sus mutilaciones, en su degradación. Pero también aprehende la belleza de no ver nunca nada claramente. Algo que se esconde en la naturaleza infinita de las cosas, y que tan bien representó Turner con sus misteriosos vapores.
Isaque Pinheiro es un productor de imágenes semiveladas. Aunque nos engaña con la contundencia y escala de las mismas. Porque busca llevar el lenguaje de la escultura a una situación límite. Y nada mejor que la pátina del desgaste para proyectar la experiencia del tiempo. Como cuando ahora nos habla, con ironía de esa Gloria, que, más que nunca, se exhibe en su dimensión oculta, en su fantasía poética y en una traducción de formas que es, al mismo tiempo, una suerte de palimpsesto.
David Barro, Fevereiro de 2018
Isaque Pinheiro detém um lugar muito particular no contexto da prática escultórica contemporânea. Alheio a determinações de uma crescente revisitação de preceitos pós-conceptuais que assumem um peso cada vez maior na paisagem criativa deste século XXI, este artista mergulha na materialidade do fazer manual como evidência de um tempo desdobrado em pregas de humor, surpresa, visualidade expandida e sentido critico perante a própria história da disciplina.
Trabalhando essencialmente com materiais simbolicamente carregados como o ferro e o mármore, a sua visão expande os limites convencionados quer da representação figurativa, como da auto-referencialidade abstrata.
Na presente exposição, que intitulou “A Gregos e a Troianos”, Isaque Pinheiro apresenta uma série de trabalhos realizados a partir de estores de PVC que se apresentam como se de pinturas se tratassem, assim estabelecendo uma relação paradoxal com a enraizada perceção da pintura como janela para o mundo. Aqui, estas estruturas que normalmente servem precisamente para obliterar a visão com o exterior, são essas janelas para um mundo. Se numa primeira experiência com este material este lhe tinha servido como estrutura de suporte para uma performance na qual inscrevia a palavra democracia por meio de incisões que devidamente conjugadas com o correr das lâminas se podiam completar para uma legibilidade eficaz, agora complementa a presença dessa obra manipulável com dois outros trabalhos (Sem título e Maioria x Extrema, ambos de 2018) que se distinguem pelo facto de estarem cuidadosamente emoldurados. Tal como noutras situações, Isaque Pinheiro convoca com extrema habilidade um potencial desviante da perceção de movimento, aqui congelado, embora sublinhado pela presença no espaço expositivo de documentação fotográfica da anteriormente referida performance.
Fazendo oscilar as certezas da razão mediante os ardis da visão, obras como Outside In e Em Branco, de 2018, remetem para ações e situações de pintura e escrita – a máscara de um motivo decorativo e a página de papel -, que são petrificadas no mármore.
Pequenos monumentos aos paradoxos da arte enquanto sistema de representação flutuante, nelas imaginamos o devir matricial do gesto irrepetível. São armadilhas conceptuais para pleno disfrute visual.
Miguel von Hafe Pérez, 2018
Se tomarmos o título da exposição como um anagrama, transpondo letras, separando trechos, trocando as ordens, teríamos conotações distintas para tratar de duas imagens pregnantes: a cor e o rei. De outro modo, a junção de partes nos leva à palavra “acordo”, trama, negociata. Assim, Isaque Pinheiro, artista português que tem na escultura sua principal expressão, chega ao Brasil trazendo-nos reflexões sobre o poder, a verticalidade de um signo, a imposta e rarefeita legitimidade de um monarca. Tal imagem carrega e manipula uma das mais valiosas cartas de um jogo.
Porém, o rei está muito distante da perfeição; quatro matrizes de madeira de cedro reproduzem a carta do baralho, mas, no sistema CMYK, as cores azul, magenta, amarelo e preto nunca estão coadunadas em completude para a perfeita impressão. Esculpidas pelo artista, as matrizes sempre servirão para imprimir gravuras, nas quais uma ou mais cores tornarão a imagem do rei incompleta. Apenas em uma das provas, que o artista coloca em destaque, vemos a carta completa, mas com uma dobra, na madeira, possibilitada por dobradiças, assim como acontece nas próprias cartas que se desgastam com o tempo. Nas palavras do artista: “só quando todas as cores políticas estão presentes no mesmo universo e se relacionam poderemos ambicionar ter um governante ou um governo pleno”. A cor do rei nos condiciona, inevitavelmente, para metáforas outras que ora se relacionam com a presença das cores dos naipes das cartas (espadas, ouros, paus e copas), ora pode nos incitar a pensar em etnicidades, o branco, o negro. Isaque Pinheiro escolhe, apenas, o naipe de paus que, nos interesses do artista, aproxima-se da classe operária, dos trabalhadores rurais, diferente dos outros naipes que se relacionam à nobreza e à guerra.
Sabemos, como nos alertara Frantz Fanon, que “a descolonização é sempre um fenômeno violento” (1). Com isso, manter a democracia se faz tarefa, até hoje, carregada de complexidades. Tornar ampliadas as leis, muitas vezes, deixa contraditório o entendimento de que uma simples consanguinidade pode instituir um estado, ainda que de exceção, conferindo a um único sujeito a manutenção do comando de uma nação. E os cartazes das ruas, as pichações nos muros, a grita não nos deixam esquecer da ilegitimidade das representações políticas. Vemos um mundo avançar e retroceder, princípios de igualdade serem retirados, modificações nas relações de gênero e novos modelos familiares não conseguirem ser implementados. Vive-se na hipocrisia. E, como num jogo de cartas, tudo pode se reordenar. Colocar a maioria da população em um jogo equânime torna-se utópico. E Isaque se interessa em colocar os cartazes do rei em sequência como se estivéssemos diante de um parlamento. De modo recorrente, valorizam-se as cartas maiores que cortam as jogadas, com a força de um lance em que rainhas, reis e ases levam todas as cartas subalternas quase como empregados, escravizados, contingente diminuto e diminuído.
Na produção de Isaque Pinheiro, destaca-se o acertado interesse por objetos e imagens próximas, banais e a sua transposição em materiais inusitados. Em trabalhos anteriores, o artista fez de um capacete, uma escultura de mármore, couro e metal; de uma peça de carne, um objeto de mármore; de uma asa, uma mala de couro. Ou seja, a proximidade de uma imagem comum, as cartas de baralho, é a imediata relação que podemos vislumbrar em “AcorDo Rei”. Se buscarmos os modos da manufatura, vemos um alto grau de virtuosismo, principalmente nas tramas (como arabescos bizantinos) presente na matriz do verso. Isaque escolhe matrizes em madeira e a xilogravura como peças que compõem a exposição. A violência da imagem do rei pode ser repetida no próprio processo de escultura, sempre agressivo, com desbastes, cortes, secções. De outro modo, o Rei está gasto, pela ausência de uma ou mais cores do sistema CMYK e com falhas nas tintas de impressão estimuladas pela própria técnica, em que os veios da madeira sempre estão presentes.
“AcorDo Rei” mostra, então, gestos e imagens repetidos que buscam a regularidade impositiva, modular, grandiosa, opressora, mas que, ao mesmo tempo, interessa-se pela quinta matriz, aquela que mostra um mundo ainda a ser descoberto, na esperança de outras vozes, outros tempos, novos tempos virados do avesso.
(1) Fanon, Frantz. Os condenados da terra: Juiz de Fora: UFJF, 2005, p. 51.
Marcelo Campos, 2018
“No conocemos la inaudita cabeza, en que maduraron los ojos”. Así comenzaba Rilke el poema Torso de Apolo Arcaico, una écfrasis del Torso juvenil de Mileto expuesto en el Museo del Louvre. Se cuenta que Walter Benjamin se obsesionó con este poema cuando lo oyó de la boca de Ernst Buchor, profesor de arqueología clásica de la Universidad de Friburgo, que solía iniciar sus clases con la lectura de este poema, para después prorrumpir en discretas lágrimas.
Escribía Benjamin en Dirección única (1928) “Únicamente quien supiera contemplar su propio pasado como un producto de la coacción y la necesidad, sería capaz de sacarle para sí el mayor provecho en cualquier situación presente. Pues lo que uno ha vivido es, en el mejor de los casos, comparable a una bella estatua que hubiera perdido todos sus miembros al ser transportada y ya sólo ofreciera ahora el valioso bloque en el que uno mismo habrá de cincelar la imagen de su propio futuro”.
Seguimos preguntándole al mármol. ¿Podía la configuración de las piedras proporcionar a los hombres algún control sobre el calor de su carne?¿Podía incorporarse en la ciudad el poder para razonar?. Estas preguntas que realizaba Richard Sennet en el influyente texto “Carne y piedra”(1994), me asaltan al ver las últimas producciones de Isaque Pinheiro en las que la materialidad del mármol se ve atravesada por cuestiones que tienen que ver con el viaje, la movilidad, el transporte, a partir de la noción de un mapa que actúa muchas veces como trampantojo. El mapa como experiencia vital. El mapa como autorretrato. El mapa como incierto devenir.
En las piezas de Isaque siempre hay algo que nos incita a estar entre. En un lugar intermedio. Entre varios tiempos. Varios espacios. En ese espacio de incertidumbre que no es otro que aquel en el que siempre tiene lugar la experiencia artística. “Nunca me olvidaré que en medio del camino /había una piedra, / había una piedra, había una piedra en medio del camino/ en medio del camino había una piedra” escribía Carlos Drummond de Andrade en un poema que me enviaba Isaque hace unos días.
Ahora miro sus mármoles plegados, las cajas transportables, la superficie de sus piezas como si a la piedra se le hubiera transferido la textura del plástico de embalaje y pienso en como su trabajo intenta desafiar el tiempo, instaurarse en un estar aquí y ahora, siempre entre, en ese intervalo en el que la vida sucede y el secreto acontece.
Recuerdo que una de las primeras piezas que conocí de Isaque fue un trozo de mármol en el que parecía inscrito parte de lo que podía ser un reloj. Estaba fragmentado, sólo podíamos ver una fracción de tiempo. El tiempo-ahora que decía Brea. El tiempo que acumulaba ese trozo de mármol y que ahora volvía para preguntarnos sobre nuestro propio tiempo. In ictu oculi. Como una vanitas que alerta sobre la fugacidad de la vida.
Hace unos días me llegaba al correo la última pieza de Isaque. Una puerta en el camino. Ese es el título escogido para una de las obras que presenta en esta exposición. Un lugar de paso. Un elemento que nos invita a ser traspasado. Una persiana entreabierta que induce a ir hacia otro lugar. Las coordenadas secretas están en el mapa. El equipaje encerrado en esas cajas. El viaje está por comenzar. Nunca me olvidaré que en medio del camino había una piedra. Siempre recordaré que esa piedra tenía forma de ventana. El mármol sigue encerrando las respuestas. La imagen siempre surge por extracción. Preguntémosle al mármol una vez más.
Como escribía Clarice Lispector “más allá de la oreja existe un sonido, en el extremo de la mirada un aspecto, en las puntas de los dedos un objeto: es allí adonde voy. En la punta del lápiz el trazo. Donde expira un pensamiento hay una idea, en el último suspiro de alegría otra alegría, en la punta de la espada la magia: es allí adonde voy. En la punta del pie el salto. Parece la historia de alguien que fue y no volvió: es allí adonde voy”. Hacia aquel lugar encamino mis pasos. Y las piedras seguirán en medio del camino.
Jesús Alcaide, 2019
Durante o mês de Agosto, Isaque Pinheiro ocupou os espaços do Antigo Matadouro de Évora a convite da Associação Pó de Vir a Ser para uma residência artística que visa estimular a criação de esculturas em pedra e contribuir para uma colecção efectiva de arte contemporânea pública, especialmente pensada a partir e para a cidade de Évora.
Ainda baseado no Porto, o Isaque explicava-me, através de uma troca regular de e-mails, o seu projecto “Pano”, enviando-me imagens que havia criado a partir de fotomontagens das suas visitas prévias a Évora e desenhos que ia fazendo a partir de modelos que ia ensaiando no quintal da sua casa. A luz do Porto é, sempre, mais escura, os raios do Sol parecem mais difusos, coados através de filtros que se poderiam tornar, muito facilmente, num Hudson ou noutro semelhante… em Évora, viria a encontrar outra luz. A partir destes elementos, construí uma primeira imagem no meu pensamento do que seria a obra do Isaque e escrevi um texto inicial.
Chegado a Évora, era evidente o entusiasmo de Isaque com a residência. O espaço do Antigo Matadouro, facilmente, contamina qualquer pessoa com gana para criar. Desactivado como espaço industrial que fora, foi cedido pelo Município, nos anos 80, ao Centro Cultural de Évora para a instalação do Departamento de Escultura em Pedra, cujo legado, após a extinção deste, a Associação Pó de Vir a Ser perpetua. Localizado no limiar do centro histórico, o espaço esconde-se atrás de muros altos, de um dos lados da cidade, e de fachadas solenes de paredes grossas que espreitam o pequeno largo junto a uma antiga prisão, do outro. Entrar ali, num dia de calor imenso, produz uma espécie de miragem na nossa alma. Há vários espaços cobertos, semi-cobertos, ou já sem tecto, dispostos em torno de um pátio central e de um jardim espontâneo, onde a luz do sol alto produz uma vibração frenética nas esculturas espalhadas pelo chão ou em plintos de estrutura metálica, como se estas contivessem uma vida inorgânica que transforma a sua forma, aparentemente, petrificada num movimento, um espectro que as envolve e as faz irradiar energia pura. Mas tudo vibra ali: as buganvílias de rosa intenso, o amarelo e o azul caiados desgastados pelo tempo e testemunhas do antigo ofício, os ocres dos velhos portões, as bancadas de mármore branco das salas de enchidos em perfeita simbiose com as esculturas que, agora, pousam sobre elas. A estranha afinidade produz-se através da matéria, transformando este espaço, com as suas conotações e os vestígios do passado, num lugar onde o tempo pára e só volta a rodar aos sons da pedra ao partir, ao polir, ao gravar…
Foi nestes espaços que o Isaque montou a sua oficina-atelier por um mês, dando-me notícias, sensivelmente, a cada dia que passava da evolução do seu trabalho, por entre o maravilhamento próprio de quem vê nascer uma forma da matéria inerte e a perplexidade que, por vezes, esse emergir à superfície de algo que pertencia, até há pouco, à imaginação, provoca. Em momento algum, senti que existisse alguma vacilação no processo, apenas uma energia contagiante de ver a obra a ganhar corpo e o desejo de a fazer mover, sempre cada vez mais, testar os seus limites qual máquina infernal que, secretamente, concentra uma força criadora, que o artista liberta, em infinitas possibilidades de expressão e composição. O processo foi, por conseguinte, essencialmente experimental e generosamente amplificado com a reunião de uma pequena comunidade dedicada a diferentes práticas artísticas que pôde participar na execução da obra. As residências artísticas ali têm, também, esse intuito: reunir diferentes pessoas que se entreajudam e conversam à medida que as ideias se desenrolam e as esculturas adquirem forma. Há dias, ainda, em que a residência se abre à cidade, a quem queira saber um pouco mais sobre o que ali se passa e talvez aprender sobre a prática da escultura em pedra, num momento informal de convívio e partilha.
O Isaque começou por escolher quatro painéis de mármore de Estremoz de grandes dimensões, que dispôs, de forma ligeiramente elevada, no chão do antigo matadouro e pintou, em primeiro, com rolo e tinta preta. Quatro quadrados negros dos quais passou a emergir uma luz forte nas linhas que Isaque começava a gravar. O fundo negro e liso da tinta sobre a pedra polida permitia que, a cada golpe de disco, se revelasse, na espessura escondida da pedra em bruto, uma luz interior, um sulco que, em vez de sombra, irradiava, iluminando o desenho e criando leveza num pano escavado. O movimento dos panos e as suas pregas pareciam soltar-se do fundo negro e querer pairar no ar, chamando o vento. O contraste era inebriante, e, por momentos – creio -, que o próprio Isaque na proximidade e no enamoramento a que esse trabalho debruçado sobre o plano da pedra no chão obrigava, se questionou sobre o resultado final, porque aquelas imagens esvoaçantes gravadas na pedra iriam desaparecer (embora existam fotografias a testemunhar todo o processo). Decerto, é um dos desafios quando se trabalha a pedra – libertá-la do seu peso e transformá-la em leveza, em movimento, em luz (valores estéticos da escultura clássica greco-romana para a qual as imagens dos panejamentos remetem, também) -, contudo, a residência do Isaque perseguia essa possibilidade, já referida, da obra poder gerar outras imagens a partir de algumas proposições e brincando com o acaso intrínseco à experimentação. Como o Isaque me confidenciou: quando avançou para a impressão das gravuras, interessou-lhe “fazer, fazer”, experimentar subtis variações de cor; deixar os detritos, que vinham com as brisas quentes, poisar na matriz, transformando-se em texturas; ensaiar com diferentes quantidades de tinta, jogando com o fundo e a figura; e não tanto apreender e executar a doutrina da arte de gravura preocupada com a perfeição do método e da técnica. No fim, aquelas gravuras correspondiam ao outro desejo da residência do Isaque, de tornar a obra de arte em arte pública, assumindo, desde logo na própria produção da obra, essa liberdade que a obra de arte adquire quando se solta das convenções de um certo modo de fazer, tornando-se experimental, e do próprio valor mercantil da obra (as gravuras degradar-se-iam com o tempo). Depois, a própria ideia de fixar as gravuras nos muros e nas paredes da cidade, segundo diferentes composições de grande formato, iria permitir trabalhar e explorar outras qualidades, que surgiriam com essa experimentação e com a condição desses lugares.
A segunda fase requereu, então, a montagem de uma oficina de impressão de grande escala. O processo envolveu, necessariamente, um teste aos utensílios e o desenvolvimento de um sistema artesanal, que implicou desde a composição da tinta e a quantidade de óleo, por exemplo, à força que se imprime no rolo, levando o papel a absorver mais ou menos tinta e a imagem, consequentemente, a ser mais nítida e definida ou mais esbatida e fugaz. Nas primeiras gravuras que o Isaque executou, a imagem gerada era, ainda, muito similar à matriz, àquela imagem de um pano branco sobre um fundo negro, mas em que o pano já não se libertava do fundo, como o próprio branco já não era luz pétrea intensa. Esta primeira gravura reforçava, de certa forma, a bidimensionalidade da superfície e a transferência ou decalque do desenho. Com os ensaios seguintes, a imagem impressa depressa se soltou da sua matriz e sucedeu o que Gilbert Simondon descreve sobre as interacções (ou as diferentes energias que ocorrem no processo de modulação entre forma e matéria pensado por si como oposto ao tradicional modelo estático) entre um molde e a obra que nasce a partir deste. Esta não resulta de uma simples transferência de propriedades, mas sim de um plano de forças que surge entre o molde e a matéria a moldar, que permite a individuação e criação de um novo elemento, que deixa, consequentemente, de pertencer a um (ao molde) ou ao outro (à matéria). O controle, que o Isaque começou a adquirir deste plano de forças gerado entre as matrizes de pedra e as gravuras, permitiu a criação de uma obra singular, cuja expressão e respectiva variação advêm, apenas, de si própria: a obra como máquina criadora infinita. O pano readquiriu movimento, um movimento mais solto ainda e, ao longo do muro comprido, que ladeia o antigo matadouro (um dos lugares escolhidos por Isaque), um movimento animado ou imagem-movimento consoante os nossos passos. O papel adquire maleabilidade e os panos parecem voar, sentindo-se, por instantes, uma pequena brisa na face, mesmo que o vento não sopre. Os traços já não irradiam luz desde a espessura da pedra, mas compõem outra luminosidade, intensificada pelas sombras representadas e coloridas dos panos, tornando-se ainda mais leves, enquanto subtis variações de cor e diferenças imperceptíveis, que a repetição traz, fazem a imagem vibrar, criando um ritmo quase melódico de uma manhã ou de um fim de tarde.
A escolha dos lugares para a colagem destas composições de grande escala não foi aleatória e é preciso visitá-los para compreender a sua importância na cidade. Évora é a cidade do Bairro da Malagueira, um bairro de habitação de custo controlado desenhado por Álvaro Siza no final dos anos 70, já após a sua experiência nos bairros de São Victor e da Bouça durante o processo S.A.A.L. (Serviço de Apoio Ambulatório Local) e na qual baseou o método projectual de diálogo directo com os futuros habitantes do bairro, revelando uma sensibilidade e uma intuição – que passará para o desenho – sobre o êxodo a que essas pessoas se submeteram em procura de uma vida melhor. Hoje, grande parte dos habitantes originais já não mora na Malagueira, como o próprio bairro começou a ser gentrificado devido à notabilidade crescente do seu arquitecto e ao impacto internacional que foi adquirindo, encontrando-se, inclusivamente, ofertas de arrendamento no Airbnb (subvertendo, completamente, a sua razão primeira).
Quando Álvaro Siza chegou à Malagueira, encontrou um terreno amplo vazio e, num dos seus limites, o bairro de Santa Maria, um bairro clandestino dos anos 40, cuja organização (consolidada à data) influenciou o plano geral e a vivência da Malagueira (desde o perfil de rua à tipologia adoptada). Um dos troços do plano, no encontro dos dois bairros, constituído por doze casas, permanece, paradoxalmente, inacabado e entaipado (com excepção da ocupação informal de uma casa pela comunidade de etnia cigana, que esteve, igualmente, na origem do bairro de Santa Maria). O Isaque escolheu, precisamente, esse lugar: um pátio que delimita o conjunto das doze casas e deveria fazer a transição entre a Rua do Rochedo (que define o encontro dos dois bairros) e a Rua das Doze Casas (uma rua que não o chegou a ser, voltada para um baldio), pensado, certamente, como espaço público comum onde os habitantes poderiam reunir-se para conversar ou jogar às cartas nos fins de tarde quentes à sombra das paredes das suas casas, onde a vegetação dos pátios espreita, e dos muros altos que definem os seus outros lados de vãos largos desenhados sobre a rua e o bairro contíguo. Esta vivência da rua encontramo-la ao visitar este lugar. Os habitantes da casa ocupada apropriam-se da rua e, ali, se reúnem em torno de uma mesa, sentados em cadeiras de esplanada, enquanto as crianças brincam, espontaneamente, com o que encontram em seu redor. Quando o Isaque começou a colar as gravuras num das paredes do pátio, depressa as crianças se ofereceram para participar. Foi, certamente, um momento belo. A população foi convidada a participar nesta experiência estética (a experiência não se resume à montagem de uma obra de arte no espaço público, mas implica esse envolvimento com as populações e uma certa duração no tempo, que se pretende intensiva), concedendo à imagem do pano e à obra, neste lugar, o seu sentido político. Um lugar invisível no tecido social e para as forças políticas da cidade torna-se, através do acto estético, visível, em que, atrás do pano, espreitam doze casas que nunca puderam cumprir o seu desígnio, estando votadas ao abandono, não obstante a carência de habitação social existente na cidade de Évora. A experiência estética partilhada no seio destas comunidades tem, igualmente, esse poder de fazer despertar zonas recônditas do corpo, libertando a sensibilidade e a imaginação daqueles que, perante a obra de arte e desconhecendo o que o conhecimento possa dizer sobre esta, só poderá reagir segundo um impulso físico, de acordo com o que a obra lhe diz ao seu corpo intuitivo. Às crianças, fê-las dançar… a outros, provavelmente, acordar memórias ou, quem sabe, activar cheiros.
No fim da sua residência, Isaque voltou ao início, às matrizes de pedra. Após as impressões das gravuras, limpou as matrizes dos restos de tinta, devolvendo às superfícies polidas a cor e os padrões naturais da pedra, enquanto os sulcos, nos quais a pedra se mostrava em bruto, restaram impregnados de preto brilhante e espesso, compondo, agora, um desenho (ainda que se notem os golpes do disco de gravar a pedra, a imagem que surge, neste momento, é semelhante a um desenho a tinta negra) de quatro panos negros que escondem os vestígios de um passado. Esta solenidade é complementada com uma estrutura em aço que permite pousar as pedras ao alto, ligeiramente inclinadas, no espaço público. Isaque optou por dispô-las no largo em frente ao antigo matadouro, em detrimento de uma escolha mais fácil de um lugar no centro histórico, reforçando a sua leitura sensível da cidade. No largo, os quatro painéis de pedra formam uma composição dinâmica com a qual podemos estabelecer diferentes graus de aproximação (e eles apelam a esse olhar atento), levando-nos a tornar íntimos da obra no momento em que se torna, por último, pública e perene.
Sobre a residência artística de Isaque Pinheiro “Pano”
Susana Ventura, 2019
Duas perspetivas numa proposta – uma é crítica, subjetiva e conceptual; a outra ativa, pragmática, objetiva, comercial, utilitarista e oportunista.
Duas perspetivas aparentemente inconciliáveis, confrontam-se sob a forma de uma instalação com uma ocupação performativa num exíguo gabinete de especulação imobiliária. O local onde se desenrola a ação é o espaço de montra da Galeria Presença.
No vidro da montra apresenta-se uma obra inédita, cuja configuração dificulta a relação visual entre a rua e o interior da galeria.
A obra é constituída por uma persiana de plástico onde podemos ver a inscrição dum número de telefone. Uma inscrição que em virtude da prática quotidiana da publicidade de rua, tal como acontece no nosso país, remete para a eventualidade da existência de uma venda ou dum arrendamento imobiliário.
Da inscrição podemos dizer que transforma a instalação num dispositivo, pois estabelece uma entre outras possibilidades – a hipótese de comunicação entre o público que passa na rua e o artista que permanece no interior da galeria.
A ação do artista Isaque Pinheiro será acompanhada por outros personagens/agentes da ação performativa: um curador/crítico e um advogado, o que multiplica as possibilidades performativas e de criação de outras narrativas.
Nesta ficção, estes personagens pelo papel que habitualmente possuem e desempenham, carregam em si outras suspeitas. O primeiro pode ampliar a carga poética e conceptual, o segundo implica de imediato uma atenção técnica para as contingências jurídicas que decorrem no mercado da arte e dos limites que se poderão colocar à praxis artística.
Sobre a residência artística de Isaque Pinheiro “Pano”
J. Baeta & OLHO COMPOSTO, 2019
Na obra de Isaque Pinheiro (Lisboa, 1972) o acto de replicar um objecto de uso quotidiano está intimamente ligado a uma prática proficiente que, não sendo refém de uma obsessão pelo virtuosismo, presta especial atenção ao detalhe executado em técnicas e materiais muito diversos, como a madeira, a cerâmica, o plástico, metais ou pedra, entre muitos outros. Nos diversos objectos que desenvolveu, a referência a Marcel Duchamp indicia uma atitude perante o legado da arte conceptual, a sua reinterpretação, por vezes irónica, e muitas vezes crítica na sua relação com a história recente da arte, mas também com os modelos canónicos do classicismo, como se pode observar na obra “Ampulheta”, de 2013.
Contudo, durante um certo período da sua obra, Isaque Pinheiro desenvolveu peças de grande escala tomando como modelos objectos reconhecíveis de uso quotidiano, talvez aqui numa aproximação à Pop Art, a Andy Warhol e, numa observação mais imediata, a Claes Oldenburg e Coosje van Bruggen, sua mulher. Quando proponho uma aproximação, e não uma influência decisiva, é porque Isaque Pinheiro não segue a mesma metodologia em termos cromáticos e na tipologia de objectos que selecciona. Estes não são objectos da sociedade de consumo, mas sim, na sua maior parte, ferramentas de uso de trabalho oficinal, como por exemplo as fitas métricas de marcenaria, da série intitulada “Mão Livre”, de 2011; ou ainda “7 Chaves”, de 2010, um conjunto de esculturas de parede executadas a partir de ferramentas, como a histórica chave inglesa utilizada na mecânica. Em todas estas obras e, se assim podemos dizer, na sua obra em geral, a escultura é um campo de trabalho que tem uma particular relevância nos processos e decisões que o artista desenvolve mental e manualmente. A manufactura destas obras remete inevitavelmente para o universo do trabalho, dos materiais e do factor retributivo que todo o trabalho implica, e assim das suas condicionantes sociais e dos mercados que lhe correspondem. Como exemplo, podemos revisitar a série “Vendo País para comprar casa”, de 2019, que estabelece um jogo crítico e satírico com os valores económicos e tem a sua raiz numa outra obra, executada uma década antes e intitulada “Há mas são verdes – 0000001”, de 2009. É uma escultura em mármore que replica um recibo verde de uma profissão liberal (de um artista: pode ler-se, no campo da Actividade Exercida, “Escultura”), com as seguintes dimensões: 50 x 60 x 2 cm. A escultura é decisivamente ampliada na sua escala e proporção, deixando de ser um documento proporcional à mão e ao caderno de bolso para ser um objecto com uma dimensão semelhante a uma pintura de formato médio, mais característico de uma representação de interior ou de uma paisagem. Neste aspecto, o trabalho de Isaque Pinheiro cria uma leitura disruptiva, dado que na referência do motivo remete para um universo conhecido, mas o que de facto presenciamos como obra de arte, como representação, reenvia-nos para um discurso universal sobre as suas condições de possibilidade na relação com o espectador.
Deste modo, o projecto iniciado em 2019 sob o título “Produção Caseira” assenta, por um lado, em algumas das premissas aqui elencadas, e por outro numa ideia que reúne categorias que geram um factor de empatia entre elas. Estas são, segundo o artista: “Arte, economia e auto-sustentabilidade”, sendo neste âmbito que a sua obra ganha uma densidade social e política. De que trata, na realidade, esta produção caseira? Trata de replicar, pela prática da xilogravura, a impressão de notas de Euro, inicialmente no valor virtualmente fiduciário de 50 €, recentemente no valor de 100 €, e para breve as que correspondem aos valores de 200 € e 500 €. Estas impressões em papel, a partir da matriz de madeira, são manufacturadas, irregulares na impressão e de dimensão superior aos originais. Não se trata, portanto, de uma apropriação verosímil do original, mas de construir uma série, em múltiplos que perfazem o mesmo valor final da edição que remete para o original da moeda de troca. Assim as gravuras de 50 € têm uma edição de 200 exemplares, as de 100 € uma edição de 100 exemplares, as de 200 € terão uma edição de 50 exemplares, e a edição final a partir da nota de 500 € contará com 20 exemplares destas gravuras.
Acresce ainda que estas gravuras, e outra documentação do projecto, são transportadas numa mala revestida e pintada de forma artesanal, uma prática “caseira” quase próxima da bricolage, que exibe um desgastado padrão da griffe Louis Vuitton. Esta é também uma das marcas de luxo exclusivas mundiais sujeitas à contrafacção, acto penalizado por lei, mas que proporciona a vulgarização de uma representação de um objecto que distingue o poder de compra entre as classes sociais, atribuindo-lhe uma falsa distinção que é imperceptível ao olhar desprevenido do cidadão comum.
A acção activista de Isaque Pinheiro desconstrói todo este imaginário de exclusividade e de poder financeiro, seja no universo do mercado da arte, ou na aquisição de qualquer outro objecto, como aconteceu com uma empresa de bicicletas do Porto, a Velo Culutre, que reconheceu as gravuras como dinheiro caseiro, para aquisição dos seus produtos. A mala é só uma mala pintada manualmente por um artista, e as gravuras que representam as notas de 50 e 100 Euros são vendidas exactamente pelo valor de mercado de 50 e 100 Euros. A questão essencial que o artista nos coloca é o valor da obra de arte, e da sua autoria enquanto projecto artístico, no contexto de um mercado assente numa série de agentes que divulgam e protegem o trabalho dos artistas e o fazem circular.
No início de 2019, Isaque Pinheiro ficou sem esse factor de divulgação e promoção, dado que as galerias com que trabalhava cessaram a sua actividade. Iniciou então a impressão das gravuras com a face das notas de Euro vendidas pelo valor unitário que reproduzem, permitindo que o artista tenha acesso ao dinheiro do público comprador, ou institucional quando se trata de uma colecção privada ou pública. É como se cada uma destas gravuras fosse uma espécie de imagem de um título de investimento emitido pelo artista. Independentemente da eventual valorização destas obras, esta acção é no imediato auto-sustentável para a vida do artista no plano económico, e social no contacto com público, em eventos como as feiras de arte da ARCOLisboa e ARCOMadrid, em 2019.
Passado um ano sobre o início deste projecto, as feiras de arte ainda não aconteceram, o dinheiro e as transacções passaram para as plataformas electrónicas, plastificaram-se, diz-se agora numa gíria de reconversão da actividade económica. As gravuras manufacturadas e a mala/arquivo/galeria percorrem as redes sociais, enquanto obras de arte para venda. O seu valor será sempre distinto da inscrição impressa pela xilogravura, residindo no acto e no gesto político.
Mas é também um jogo, no sentido lúdico, quase como um jogo de tabuleiro. E parecendo irónico, é muito claro nas questões que nos propõe.
João Silvério, 2019
Um dos fascínios da arte é que, tal como sucede com o Direito, está sujeita a interpretação. Nenhuma lei foi escrita para nunca ser lida ou interpretada, mesmo que literalmente, assim como nenhuma obra, ao ser apreciada, deixou de ser objeto de um ensaio conjetural. Tanto a arte como o Direito são evolutivos, incompreendidos, ubíquos, disruptivos e manifestações cognitivas da natureza humana.
A interpretação tanto pode consubstanciar o ato de descobrir o significado de uma determinada exteriorização sensorial, acertando ou errando naquilo que foi intencionalmente criado, como abranger a possibilidade de o intérprete não efetuar qualquer descoberta, mas de ser o próprio a desenvolver o seu significado, tornando-se parte ativa, quiçá integrante, da criação em causa. É o que sucede quando, por exemplo, o Supremo Tribunal de Justiça profere um acórdão uniformizador de jurisprudência ou quando um curador escreve um texto sobre uma determinada exposição artística. Em alguns casos, menos comuns, só há uma resposta possível à interpretação, noutros, as possibilidades são tão infinitas quanto a imaginação.
“A Malha”, expressão que oferece o título à exposição do artista Isaque Pinheiro, patente na galeria .insofar, em parceria com a ArtWorks, composta por cento e cinquenta e cinco esculturas, transportar-nos-á inevitavelmente para a conceptualização das malhas da Justiça, metáfora atinente à aplicação do Direito em casos concretos, mas também à rede intrincada de pessoas, normas, processos, instâncias, órgãos e atos que compõem o sistema de Justiça em Portugal. Cada vítima que apresenta queixa, cada arguido que pugna pela sua liberdade, cada tribunal que julga, cada trabalhador que exige ser pago pelo seu esforço, cada empresa que cobra uma dívida, cada órgão que fiscaliza uma atividade, cada cidadão que demanda judicialmente um comerciante, cada profissional que luta pela efetivação de direitos, cada voz que não se deixa calar, cada criador que avoca para si os frutos da sua obra, são a meritória e ínfima personificação, cada um deles, do Estado de Direito em que vivemos. Mais do que isso, significam pedaços de vidas reais, ora esculpidas em camisas, curiosamente de colarinho branco.
É, assim, de forma inusitadamente natural, que cada uma das esculturas da exposição se encontra referenciada por um processo real, que corre ou correu termos na Justiça portuguesa. Os processos em causa abrangem várias áreas do Direito, diferentes instâncias ou órgãos decisórios que actuam no sector, incluindo uma panóplia alargada de tipos de ação. Processos mediáticos e desconhecidos. Alguns, com causas de centenas de milhões de euros e outros, de uma centena de euros. Uns, de maior litigiosidade e outros, solucionados por acordo. Casos caricatos a juntarem-se a outros, repulsivos. Uns, mais compreensíveis ao público em geral do que outros, tecnicamente complexos. Decisões que são revertidas em sede de recurso. Processos que envolvem gigantes económicos e cidadãos anónimos. Porque um retrato da Justiça será sempre o retrato mais fidedigno de uma sociedade.
As obras estão expostas na fachada, o que poderá remeter para a exploração do sentido polissémica da palavra. Tal circunstância, além da originalidade intrínseca, torna a instalação expositiva num projeto de arte dirigido ao espaço público, acessível a todos, de forma contínua e ininterrupta, sem qualquer tipo de discriminação, tal como sucede, ou deveria suceder, com a Justiça. Cada direito só o é, se puder ser exercido.
O Direito deve ser a materialização da Justiça, enquanto primeiro pilar da construção perpétua de um modelo de organização social. Se a Justiça é cega, por tratar cada pessoa de modo igualitário, é também sindicável, impondo-se a quem a perscruta, o dever de aferir se a mesma é objetiva, livre, verdadeira, segura, regular, útil, moral e virtuosa. Através das obras ora expostas, somos convidados a proceder a essa análise de forma mais aprofundada. É interrompida a tradicional representação da Justiça nas artes plásticas, através dos símbolos comummente utilizados, tais como a deusa, a venda, a balança, a espada ou o martelo. A beca e a toga são metaforicamente substituídas por camisas tão aprumadas quanto destruídas, de forma fundamentadamente arrojada, demonstrando que até da destruição pode emanar o belo. É que o poder ideológico, ainda que mediato, mas materializável, sobrepõe-se determinantemente a todos os demais poderes. Se a jurisprudência está recheada de decisões relacionadas com a arte, tais como aquelas respeitantes a direitos de autor, neste exercício expositivo é a Justiça que é chamada à barra das artes.
Fábio Gomes Raposo, 2022
No ano de 2008, Isaque Pinheiro realizou uma série de esculturas intituladas “Colarinhos Brancos”. Estas peças representam, de forma depurada, uma camisa branca dobrada para acomodação numa gaveta caseira ou para um expositor de uma loja de um camiseiro ou, de um modo mais corrente, de um pronto-a-vestir. Esta nomeação de um modo genérico da produção industrial, na forma adaptada do francês “prêt-a-porter”, estabelece um contraponto com a camisa confeccionada por um camiseiro, e deste modo mais exclusiva, e encontra no trabalho de Isaque Pinheiro uma reformulação de significados e conceitos sociais sujeitos a uma acção crítica, política e por vezes derrisória, quando não mesmo imbuída de uma forte, mas subtil, ironia. Estas esculturas, trabalhadas em gesso, são formalmente sintetizadas em relação ao seu modelo real: uma forma quadrada, branca, com cerca de 45,5 cm de lado, uma faixa vertical que sinaliza os botões e um colarinho rigorosamente moldado. Tudo branco, de uma alvura austera e significativa do aprumo, asseio, e do rigor que esta peça de vestuário deve investir naquele que a usar. O modelo utilizado para as esculturas é genericamente atribuído a uma postura masculina (mas não só) mais formal: a camisa branca com colarinhos brancos. Esta é a definição que o artista determinou para intitular esta série, socorrendo-se, numa forma estrutural na sua prática artística, de uma expressão corrente, ou de um cliché, como o “colarinho branco”, que na definição do dicionário online Priberam, entre outras, pode ser entendida como uma característica de um “profissional que desempenha funções de gestão ou de administração, que não envolvem trabalho físico, e a quem se exige um certo grau de formalidade na indumentária”[1]. Mais recentemente, o artista desenvolveu uma outra obra, uma escultura intitulada “Branco Sujo”, de 2016, com a mesma matriz formal e trabalhada sobre bronze fundido. O adjectivo “sujo” agregado à figura da camisa de colarinho branco sublinha um sentido crítico sobre o tema e as suas diversas correlações.
Em 2021 escrevi um texto sobre a sua obra, em múltiplos reproduzidos, “Produção Caseira” de 2020, no qual me refiro a uma outra peça, esta do ano anterior, intitulada “Vendo País para comprar casa”, em que é muito presente “um jogo crítico e satírico com os valores económicos”, reclamando desta forma uma postura reactiva, e uma chamada de atenção para o grau de injustiça e de desnivelamento social que de uma forma ou de outra todos vamos enfrentando, mas simultaneamente absorvemos como um dado adquirido que se inscreve no status quo do nosso quotidiano. Esta obra é composta por vinte e oito placas de mármore gravado em baixo relevo, como se se tratassem de pedras tumulares: em cada uma está escrita uma relação económica entre a propriedade horizontal e o valor de custo da estadia num hotel, bem como uma avaliação depreciada do custo do valor de uma hipoteca de uma casa. Estas referências são apenas algumas das pistas possíveis para enquadrar a prática artística de Isaque Pinheiro nos seus aspectos formais e conceptuais, que se reflectem na obra “A Malha”, exposta publicamente na fachada desta galeria. “A Malha” é uma obra composta, de grandes dimensões, produzida numa primeira fase num complexo industrial a partir de um molde executado pelo artista que recria o modelo da escultura, de 2008, intitulada “Colarinhos Brancos”, mas com uma diferença substancial: trata-se de uma série de esculturas individuais, finalizadas pela mão do artista, que se presentifica no exterior do edifício como um relevo arquitetónico que num primeiro vislumbre pode assemelhar-se a um painel modernista. Contudo, sob um olhar mais atento este painel é como uma sequência de figuras inscritas em cada elemento da instalação pontuado pela forma do colarinho branco, e essencialmente pela acção violenta que descarna a corporalidade de cada um desses elementos. Deste modo, “A Malha” é também uma estratégia da linguagem que o artista utiliza para, numa acção disruptiva, nos desajustar as certezas sobre aquilo que vemos e a forma como vemos.
Uma das características desta obra é ser marcada por uma diferença de textura e de volumetria que lhe atribui um determinado movimento, tendo em conta a grelha geometricamente rigorosa. Num primeiro momento, o título pode referir-se à malha da grelha ortogonal que desenha a montagem da instalação, e num segundo momento àquilo que não é imediatamente visível, a malha de ferro que foi descoberta após cada escultura ter sido picada a martelo, descarnando, como já referi, a estrutura interna de cada uma das peças. Nesta acção física, Pinheiro concebe uma relação entre o gesto e a palavra que não só descreve o gesto enquanto processo e resultado, mas também inscreve a polissemia do vocábulo e a sua condição de possibilidade enquanto processo linguístico. Deste modo, o artista desenvolve uma diferenciação sobre a observação formal da obra que é, parcialmente, uma observação factual e objectiva sobre a construção deste trabalho através de uma designação: a malha. Contudo, esta obra reactiva num segundo plano uma assunção crítica que não é reconhecível imediatamente, relacionando cada uma das figuras do colarinho branco com um índex de processos judiciais, cuja existência se encontra publicamente disponível. Ou seja, cada um dos elementos escultóricos está associado a um número ou à designação descritiva que identifica cada um dos processos elencados. Esta listagem só pode ser consultada em conjunto com a lista de obras que compõem a totalidade da instalação.
Regressemos à obra “Colarinhos Brancos”, de 2008, para compreendermos um correlato de relações que são desenvolvidas de uma forma mais coerente na obra “A Malha” na sua complexidade crítica, política, e em diversas formas genéricas que são vulgarmente incorporadas no senso comum, como o crime de colarinho branco, e na especialidade da linguagem jurídica, como por exemplo na seguinte definição, entre muitas outras possíveis: “O conceito de white-collar crime obteve notoriedade com a obra de Sutherland, no final dos anos trinta do nosso século. Todavia, muito antes disso, os ricos e poderosos já praticavam condutas criminosas, mas a percepção destes comportamentos seria secundária, pois a visão dominante atribuía a criminalidade à pobreza e aos demais factores conexos a esta condição financeira desfavorável”[2].
Este projecto de Isaque Pinheiro revela uma continuada inquietação sobre questões sociais e materiais da sociedade em que vivemos e que têm marcado o seu trabalho, nomeadamente no retorno às obras de grande escala e de relação com o espaço público, mas também com o uso da linguagem, e de outros dispositivos semânticos e estatísticos. Por outro lado, a instalação na fachada da galeria coloca-nos perante uma posição ambígua e paradoxal, no sentido em que cada uma destas esculturas remete para a presença de um corpo, exacerbando a exposição pública da figura simbólica do colarinho branco, que, podendo não ser imediatamente associada a uma conduta social duvidosa, reside simbolicamente na memória colectiva. Neste aspecto, Pinheiro estabelece um duplo jogo, entre a sátira e a crítica, contrapondo algumas convenções sociais muitas vezes generalistas e estribadas na falsidade, no preconceito e na ignorância ou, pelo contrário, nos delitos muitas vezes sujeitos a uma lógica aparentemente difamatória em que a prova material é de difícil confirmação, e deste modo quase invisível, tal como a listagem associada à instalação da fachada, mas sujeita a uma solicitação específica para ser consultada.
Na obra de Isaque Pinheiro a linguagem é uma ferramenta essencial em termos do uso da metáfora, ou mesmo da hipérbole, enquanto figura de estilo associada a uma forma e a uma transcrição da realidade, nem sempre imediatamente apreensível.
[1] “Colarinho-branco”, Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/colarinho-branco.
[2] Cf. Bruna Hernandez Borges, “Os Crimes de Colarinho Branco e as (des)vantagens da Justiça Restaurativa”, Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais, Universidade de Coimbra, 2017, p. 14.
João Silvério, 2022