ISAQUE PINHEIRO
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A Malha

Aço, betão, tinta aquosa

155 peças | #A1, #A2, #A3, … #J19
45x45x6cm, 2022
A instalação inserida no âmbito do projeto “Fachada” na Galeria .Insofar, com parceria e produção da Artworks.

Image Copyright   Hares Datti Pascoal e Bruno Lança

A Malha, Isaque Pinheiro, arte contemporanea, escultura, arte
A Malha, Isaque Pinheiro, arte contemporanea, escultura, arte
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Uma malha de colarinhos brancos

No ano de 2008, Isaque Pinheiro realizou uma série de esculturas intituladas “Colarinhos Brancos”. Estas peças representam, de forma depurada, uma camisa branca dobrada para acomodação numa gaveta caseira ou para um expositor de uma loja de um camiseiro ou, de um modo mais corrente, de um pronto-a-vestir....
Esta nomeação de um modo genérico da produção industrial, na forma adaptada do francês “prêt-a-porter”, estabelece um contraponto com a camisa confeccionada por um camiseiro, e deste modo mais exclusiva, e encontra no trabalho de Isaque Pinheiro uma reformulação de significados e conceitos sociais sujeitos a uma acção crítica, política e por vezes derrisória, quando não mesmo imbuída de uma forte, mas subtil, ironia. Estas esculturas, trabalhadas em gesso, são formalmente sintetizadas em relação ao seu modelo real: uma forma quadrada, branca, com cerca de 45,5 cm de lado, uma faixa vertical que sinaliza os botões e um colarinho rigorosamente moldado. Tudo branco, de uma alvura austera e significativa do aprumo, asseio, e do rigor que esta peça de vestuário deve investir naquele que a usar. O modelo utilizado para as esculturas é genericamente atribuído a uma postura masculina (mas não só) mais formal: a camisa branca com colarinhos brancos. Esta é a definição que o artista determinou para intitular esta série, socorrendo-se, numa forma estrutural na sua prática artística, de uma expressão corrente, ou de um cliché, como o “colarinho branco”, que na definição do dicionário online Priberam, entre outras, pode ser entendida como uma característica de um “profissional que desempenha funções de gestão ou de administração, que não envolvem trabalho físico, e a quem se exige um certo grau de formalidade na indumentária”. Mais recentemente, o artista desenvolveu uma outra obra, uma escultura intitulada “Branco Sujo”, de 2016, com a mesma matriz formal e trabalhada sobre bronze fundido. O adjectivo “sujo” agregado à figura da camisa de colarinho branco sublinha um sentido crítico sobre o tema e as suas diversas correlações.
Em 2021 escrevi um texto sobre a sua obra, em múltiplos reproduzidos, “Produção Caseira” de 2020, no qual me refiro a uma outra peça, esta do ano anterior, intitulada “Vendo País para comprar casa”, em que é muito presente “um jogo crítico e satírico com os valores económicos”, reclamando desta forma uma postura reactiva, e uma chamada de atenção para o grau de injustiça e de desnivelamento social que de uma forma ou de outra todos vamos enfrentando, mas simultaneamente absorvemos como um dado adquirido que se inscreve no status quo do nosso quotidiano. Esta obra é composta por vinte e oito placas de mármore gravado em baixo relevo, como se se tratassem de pedras tumulares: em cada uma está escrita uma relação económica entre a propriedade horizontal e o valor de custo da estadia num hotel, bem como uma avaliação depreciada do custo do valor de uma hipoteca de uma casa. Estas referências são apenas algumas das pistas possíveis para enquadrar a prática artística de Isaque Pinheiro nos seus aspectos formais e conceptuais, que se reflectem na obra “A Malha”, exposta publicamente na fachada desta galeria. “A Malha” é uma obra composta, de grandes dimensões, produzida numa primeira fase num complexo industrial a partir de um molde executado pelo artista que recria o modelo da escultura, de 2008, intitulada “Colarinhos Brancos”, mas com uma diferença substancial: trata-se de uma série de esculturas individuais, finalizadas pela mão do artista, que se presentifica no exterior do edifício como um relevo arquitetónico que num primeiro vislumbre pode assemelhar-se a um painel modernista. Contudo, sob um olhar mais atento este painel é como uma sequência de figuras inscritas em cada elemento da instalação pontuado pela forma do colarinho branco, e essencialmente pela acção violenta que descarna a corporalidade de cada um desses elementos. Deste modo, “A Malha” é também uma estratégia da linguagem que o artista utiliza para, numa acção disruptiva, nos desajustar as certezas sobre aquilo que vemos e a forma como vemos.
Uma das características desta obra é ser marcada por uma diferença de textura e de volumetria que lhe atribui um determinado movimento, tendo em conta a grelha geometricamente rigorosa. Num primeiro momento, o título pode referir-se à malha da grelha ortogonal que desenha a montagem da instalação, e num segundo momento àquilo que não é imediatamente visível, a malha de ferro que foi descoberta após cada escultura ter sido picada a martelo, descarnando, como já referi, a estrutura interna de cada uma das peças. Nesta acção física, Pinheiro concebe uma relação entre o gesto e a palavra que não só descreve o gesto enquanto processo e resultado, mas também inscreve a polissemia do vocábulo e a sua condição de possibilidade enquanto processo linguístico. Deste modo, o artista desenvolve uma diferenciação sobre a observação formal da obra que é, parcialmente, uma observação factual e objectiva sobre a construção deste trabalho através de uma designação: a malha. Contudo, esta obra reactiva num segundo plano uma assunção crítica que não é reconhecível imediatamente, relacionando cada uma das figuras do colarinho branco com um índex de processos judiciais, cuja existência se encontra publicamente disponível. Ou seja, cada um dos elementos escultóricos está associado a um número ou à designação descritiva que identifica cada um dos processos elencados. Esta listagem só pode ser consultada em conjunto com a lista de obras que compõem a totalidade da instalação.
Regressemos à obra “Colarinhos Brancos”, de 2008, para compreendermos um correlato de relações que são desenvolvidas de uma forma mais coerente na obra “A Malha” na sua complexidade crítica, política, e em diversas formas genéricas que são vulgarmente incorporadas no senso comum, como o crime de colarinho branco, e na especialidade da linguagem jurídica, como por exemplo na seguinte definição, entre muitas outras possíveis: “O conceito de white-collar crime obteve notoriedade com a obra de Sutherland, no final dos anos trinta do nosso século. Todavia, muito antes disso, os ricos e poderosos já praticavam condutas criminosas, mas a percepção destes comportamentos seria secundária, pois a visão dominante atribuía a criminalidade à pobreza e aos demais factores conexos a esta condição financeira desfavorável” .
Este projecto de Isaque Pinheiro revela uma continuada inquietação sobre questões sociais e materiais da sociedade em que vivemos e que têm marcado o seu trabalho, nomeadamente no retorno às obras de grande escala e de relação com o espaço público, mas também com o uso da linguagem, e de outros dispositivos semânticos e estatísticos. Por outro lado, a instalação na fachada da galeria coloca-nos perante uma posição ambígua e paradoxal, no sentido em que cada uma destas esculturas remete para a presença de um corpo, exacerbando a exposição pública da figura simbólica do colarinho branco, que, podendo não ser imediatamente associada a uma conduta social duvidosa, reside simbolicamente na memória colectiva. Neste aspecto, Pinheiro estabelece um duplo jogo, entre a sátira e a crítica, contrapondo algumas convenções sociais muitas vezes generalistas e estribadas na falsidade, no preconceito e na ignorância ou, pelo contrário, nos delitos muitas vezes sujeitos a uma lógica aparentemente difamatória em que a prova material é de difícil confirmação, e deste modo quase invisível, tal como a listagem associada à instalação da fachada, mas sujeita a uma solicitação específica para ser consultada.
Na obra de Isaque Pinheiro a linguagem é uma ferramenta essencial em termos do uso da metáfora, ou mesmo da hipérbole, enquanto figura de estilo associada a uma forma e a uma transcrição da realidade, nem sempre imediatamente apreensível.
João Silvério
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Uma arte justa?

Um dos fascínios da arte é que, tal como sucede com o Direito, está sujeita a interpretação. Nenhuma lei foi escrita para nunca ser lida ou interpretada, mesmo que literalmente, assim como nenhuma obra, ao ser apreciada, deixou de ser objeto de um ensaio conjetural. Tanto a arte como o Direito são evolutivos, incompreendidos, ubíquos, disruptivos e manifestações cognitivas da natureza humana....
A interpretação tanto pode consubstanciar o ato de descobrir o significado de uma determinada exteriorização sensorial, acertando ou errando naquilo que foi intencionalmente criado, como abranger a possibilidade de o intérprete não efetuar qualquer descoberta, mas de ser o próprio a desenvolver o seu significado, tornando-se parte ativa, quiçá integrante, da criação em causa. É o que sucede quando, por exemplo, o Supremo Tribunal de Justiça profere um acórdão uniformizador de jurisprudência ou quando um curador escreve um texto sobre uma determinada exposição artística. Em alguns casos, menos comuns, só há uma resposta possível à interpretação, noutros, as possibilidades são tão infinitas quanto a imaginação.
“A Malha”, expressão que oferece o título à exposição do artista Isaque Pinheiro, patente na galeria .insofar, em parceria com a ArtWorks, composta por cento e cinquenta e cinco esculturas, transportar-nos-á inevitavelmente para a conceptualização das malhas da Justiça, metáfora atinente à aplicação do Direito em casos concretos, mas também à rede intrincada de pessoas, normas, processos, instâncias, órgãos e atos que compõem o sistema de Justiça em Portugal. Cada vítima que apresenta queixa, cada arguido que pugna pela sua liberdade, cada tribunal que julga, cada trabalhador que exige ser pago pelo seu esforço, cada empresa que cobra uma dívida, cada órgão que fiscaliza uma atividade, cada cidadão que demanda judicialmente um comerciante, cada profissional que luta pela efetivação de direitos, cada voz que não se deixa calar, cada criador que avoca para si os frutos da sua obra, são a meritória e ínfima personificação, cada um deles, do Estado de Direito em que vivemos. Mais do que isso, significam pedaços de vidas reais, ora esculpidas em camisas, curiosamente de colarinho branco.
É, assim, de forma inusitadamente natural, que cada uma das esculturas da exposição se encontra referenciada por um processo real, que corre ou correu termos na Justiça portuguesa. Os processos em causa abrangem várias áreas do Direito, diferentes instâncias ou órgãos decisórios que actuam no sector, incluindo uma panóplia alargada de tipos de ação. Processos mediáticos e desconhecidos. Alguns, com causas de centenas de milhões de euros e outros, de uma centena de euros. Uns, de maior litigiosidade e outros, solucionados por acordo. Casos caricatos a juntarem-se a outros, repulsivos. Uns, mais compreensíveis ao público em geral do que outros, tecnicamente complexos. Decisões que são revertidas em sede de recurso. Processos que envolvem gigantes económicos e cidadãos anónimos. Porque um retrato da Justiça será sempre o retrato mais fidedigno de uma sociedade.
As obras estão expostas na fachada, o que poderá remeter para a exploração do sentido polissémica da palavra. Tal circunstância, além da originalidade intrínseca, torna a instalação expositiva num projeto de arte dirigido ao espaço público, acessível a todos, de forma contínua e ininterrupta, sem qualquer tipo de discriminação, tal como sucede, ou deveria suceder, com a Justiça. Cada direito só o é, se puder ser exercido.
O Direito deve ser a materialização da Justiça, enquanto primeiro pilar da construção perpétua de um modelo de organização social. Se a Justiça é cega, por tratar cada pessoa de modo igualitário, é também sindicável, impondo-se a quem a perscruta, o dever de aferir se a mesma é objetiva, livre, verdadeira, segura, regular, útil, moral e virtuosa. Através das obras ora expostas, somos convidados a proceder a essa análise de forma mais aprofundada. É interrompida a tradicional representação da Justiça nas artes plásticas, através dos símbolos comummente utilizados, tais como a deusa, a venda, a balança, a espada ou o martelo. A beca e a toga são metaforicamente substituídas por camisas tão aprumadas quanto destruídas, de forma fundamentadamente arrojada, demonstrando que até da destruição pode emanar o belo. É que o poder ideológico, ainda que mediato, mas materializável, sobrepõe-se determinantemente a todos os demais poderes. Se a jurisprudência está recheada de decisões relacionadas com a arte, tais como aquelas respeitantes a direitos de autor, neste exercício expositivo é a Justiça que é chamada à barra das artes.
Fábio Raposo
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Isaque Pinheiro © . by Nhdesign